Opinião

Enem - os pingos nos is

Paulo Renato Souza
Em minha primeira entrevista como ministro da Educação, em janeiro de 1995, anunciei a intenção de criar um exame nacional para o ensino médio que pudesse servir, entre outras coisas, para auxiliar as universidades no processo de seleção de seus alunos. Ao aprovarmos, no ano seguinte, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), demos os primeiros passos na direção do que pretendia, ao substituir a obrigatoriedade do vestibular por um "processo seletivo". Abriam-se as portas para o exercício da autonomia universitária neste aspecto e para a criação de um exame nacional que pudesse ser adotado como um dos requisitos do acesso de estudantes ao nível superior.


Ao mesmo tempo, trabalhávamos na reforma do ensino médio, em colaboração com os Estados, finalmente definida em 1998. Naquele ano criamos o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) justamente como o instrumento para sinalizar a todo o ensino médio do País - público e privado - o sentido que a reforma deveria assumir. Em artigo então publicado na imprensa eu esclarecia que o exame não buscava medir conhecimentos curriculares dos estudantes, mas sinalizar "as capacidades que possuem ou devem apurar para obter um melhor desempenho no ensino superior ou técnico, enfrentar o mundo do trabalho e resolver problemas do dia a dia do mundo moderno".

O Enem, portanto, não foi criado para diferenciar os milhares de candidatos às escassas vagas nas boas universidades com a precisão de décimos ou centésimos de pontos. Agora se pretende a modificação do exame, que passaria a abranger maior número de disciplinas, voltando-se mais para o seu conteúdo programático. O até agora divulgado sugere que o novo Enem se assemelhará ao Enceja - o exame para certificação de jovens e adultos -, também criado em minha gestão no Ministério e que havia sido abandonado no primeiro mandato do atual governo, retornando nos últimos anos. Esse exame faz uma varredura nas estruturas curriculares gerais, pois foi criado para a certificação de nível de ensino.

Do "velho e bom Enem" toma-se a marca muito forte. De fato, o Enem tornou-se um exame reconhecido no País todo e goza de enorme respeito e popularidade. O atual governo contribuiu para isso ao tomar duas decisões acertadas: a criação do ProUni (sistema de compra de vagas em faculdades privadas para alunos carentes) e a vinculação do acesso ao ProUni ao resultado obtido pelo aluno no Enem. Entretanto, briga com os fatos quem afirma que o atual governo "ressuscitou" o Enem, que seria então um exame "moribundo". Já em 2002 o Enem teve quase 2 milhões de estudantes inscritos e foi usado como parte do processo seletivo de alunos por um quarto das instituições de ensino superior então existentes no País, dentre elas públicas de grande prestígio.

O "novo Enem" teria vários usos. Pretende-se torná-lo a parte do Enade (exame que substituiu o Provão e agora voltará a ser universal) que era prestada pelos alunos do primeiro ano da faculdade. Finalmente as duas principais críticas que eu vinha reiteradamente fazendo ao novo sistema de avaliação do ensino superior desde que foi adotado foram acatadas pelo MEC - a universalidade do exame e o uso do Enem como ponto inicial para medir o valor agregado.

Em segundo lugar, substituiria o Enceja. A mudança neste aspecto terá implicações profundas que não foram ainda discutidas. Qual será a nota de corte para os alunos que não cursaram o ensino médio regular para obter o certificado desse nível de ensino? Como ficarão os alunos que tiverem o certificado do médio regular, mas não atingirem a nota de corte do novo Enem? Continuarão a ter acesso ao ProUni, por exemplo?

O terceiro uso seria a substituição dos exames vestibulares das universidades federais. Aqui reside o objetivo declarado da mudança: promover maior mobilidade regional dos estudantes. A intenção é realmente louvável. O caminho para isso, contudo, estaria no incentivo às universidades para que promovam essa política e no aumento significativo das verbas para moradia e alimentação dos alunos. Mudança no processo seletivo seria um mero detalhe nesse processo.

Na verdade, corre-se o risco de criar apenas um "vestibulão" centralizado, a ser organizado pelo MEC, que carregará todos os defeitos do atual vestibular, criando outros tão ou mais graves. Erram os que afirmam que, no novo Enem, "compreensão substitui decoreba". Isso pode ser verdade em relação a alguns exames, mas esse aspecto já era muito bem contemplado no "velho e bom Enem".

A mudança é desnecessária. Além de orientar o ensino médio em relação ao ingresso no ensino superior, o Enem tem como ênfase a avaliação do perfil de saída dos egressos do nível médio de ensino, oferecendo uma adequada referência geral às universidades. A partir daí respeita-se a autonomia universitária para acrescentar os passos do processo seletivo que julgarem mais adequados a seu projeto educacional.

Afirmam as autoridades que se está copiando o modelo americano de acesso ao ensino superior, transformando o Enem numa versão nacional do SAT. Quem conhece aquele sistema sabe o tamanho da falácia. O governo surpreende ao declarar disposição para se inspirar na experiência dos EUA em matéria de educação. Louve-se a abertura. Uma análise mais acurada, contudo, notaria a importância do federalismo e as benesses da descentralização administrativa, muito presente na educação daquele país. Levaria à conclusão de que propostas como a da transformação do Enem em vestibular nacional e do concurso nacional de professores, tão apropriadamente criticado em editorial pelo Estado na semana passada, vão na contramão do progresso e da qualidade educativa num país grande e diverso como o nosso.
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