Ubatuba



De frente para o mar

Saulo Gil no Imprensa Livre (original aqui)
Foi em meados da década de 50 que o jovem José J. de Magalhães Netto chegou a Ubatuba pela primeira vez, num jeep de amigo, desbravando os precários acessos e atoleiros que, naquela época, dificultavam a chegada à cidade, ao tempo pouco mais que uma vila. No entanto, a segunda visita de Magalhães ao território ubatubense, chegando em um barquinho de pesca alugado em Santos, relata melhor a história dele com a cidade e com a região. Passou então nas areias e águas de Ubatuba um verão maravilhoso, que seria determinante na escolha do local e do modo de vida que adotaria em seu futuro.

Paulistano de 32, Magalhães Netto tem quatro irmãos, entre eles o veterano ator Tarcisio Meira, que preferiu utilizar o sobrenome da mãe na carreira artística. Estudante de engenharia naval numa renomada faculdade, pequeno industrial do ramo náutico e professor de mergulho na metrópole, Magalhães decidiu, em uma autorreflexão, que não conseguiria viver em nenhum outro lugar que não fosse à beira mar.

Assim, a despeito desses laços familiares e de profissão na capital paulista, optou por abandonar suas atividades e projetos da cidade grande e afastar-se geograficamente dos parentes, assim como sua esposa, que igualmente iniciava uma carreira promissora, para buscar melhor qualidade de vida junto ao que gostava, e fixou-se em nosso litoral, mais exatamente na praia do Itaguá, em Ubatuba, apesar de continuar durante algum tempo dividindo-se em viagens e aulas na capital paulista. Tendo como companheiros, inicialmente, seus próprios ex-alunos, criou em 1967 o Tamoios Iate Clube, na época uma entidade esportiva pequena e pobre, com pouca estrutura física, mas que determinou o surgimento da atividade náutica amadora em Ubatuba, juntando os adeptos dos esportes náuticos residentes na cidade àqueles que vinham semanalmente à procura do mar. Daqueles tempos, a lembrança é relatada com um olhar especial e um tom de extremo saudosismo. O marítimo, que é como se intitula, de 76 anos, parece ter vivido ontem, histórias que relatam a tranquilidade antiga de Ubatuba e o tom de romantismo que imperava na vida pacata do município, que Magalhães acredita ter- se perdido em parte com o turismo desenfreado que os anos trariam. “Outro dia, encontrei o Osmar, e logo me lembrei das noites que acabavam ao som de seu violão à beira das areias de Ubatuba”, comenta o Comodoro, ressaltando que, antigamente, a integração dos turistas com o velho povo da terra era mais fácil e comum, mais íntima e saudável do que hoje se percebe.

Ocupou por duas vezes a secretaria de Esportes e Turismo do município, Foi um dos primeiros veranistas costumeiros da cidade, mas prefere que esta fase seja chamada de semanista, já que as visitas passaram a ocorrer todos os finais de semana. Desta época, além do violão do Osmar, Magalhães se lembra com saudade da chegada das canoas de pesca na barra do rio que banha a cidade, e das noites, primeiro no decantado Rancho do Galo, no Perequê Açu, depois no bar dançante da Vera, na Avenida Iperoig. E, se hoje a estrutura do receptivo turístico municipal é algo que preocupa as autoridades de Ubatuba, antigamente a precariedade dos hotéis era comemorada pela turma de amigos do Comodoro.

José Magalhães se lembra de um célebre furo na porta do banheiro (o único de que dispunham as hóspedes) no sobrado do Hotel Felipe, que se tornou um importante atrativo da rapaziada, que revezava-se na espreita do que podiam divisar da intimidade das moças se banhando. “O Hotel Felipe era o único lugar que o pessoal de pouco poder econômico podia pagar para se instalar na cidade. A alternativa era acampar nas praias, e eu tinha até um local próprio, “exclusivo”, uma pequena e escondida clareira entre os abricoeiros da Praia do Tenório”.

Magalhães foi o responsável, entre muitas iniciativas ligadas à área de Esportes, pela construção do primeiro ginásio da cidade, o popular “Tubão”, conseguido à custa de muito trabalho. Adepto entusiasta do mergulho e do esporte vélico, criou no Tamoios Iate Clube a Escolinha de Vela e Marinharia, gratuita e dirigida aos jovens da cidade, que orienta os pequenos alunos tanto às atividades esportivas quanto à iniciação profissional para a vida marinheira. Dela já saíram velejadores que se destacaram no ambiente vélico nacional, inclusive um ex-aluno que se sagrou recentemente bi-campeão brasileiro de Vela. Conta, orgulhoso, ter ensinado quase 5 mil pessoas a lidarem com a vida marinha, tendo sido o introdutor e primeiro professor de mergulho de Salvamento do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado, pelo que foi em final do ano passado mais uma vez homenageado pelo comando da corporação com um bonito troféu e um diploma alusivo, em cerimônia que lembra comovido.

Apesar de seus longos anos bem vividos, Magalhães ainda pensa em tornar realidade um sonho antigo, a implementação da Academia do Mar de Ubatuba, projeto que idealizou naqueles primeiros anos em que se fixou no município. Já tem o terreno adequado, e parte do que seria necessário aplicar. “Mas só o faria em parceria com meu filho”, diz. “Não sendo assim, vou pegar meu veleiro, o barco com que também sonhei toda a vida, e tentar ainda subir a costa. A Academia será meu último projeto. Sabe, como tenho muita vivência neste meio, muita gente diz que não posso desperdiçar este meu know- how sobre mergulho, sobre vela, enfim sobre atividades ligadas ao mar e à água”, completa Magalhães, que, continua administrando o Tamoios Iate Clube, fazendo gratuitamente as funções de um gerente do clube, e ainda projetista, de marceneiro, de pedreiro. Acompanhando cada martelada e cada tijolo colocado, como fez nos últimos quarenta anos, quando não martelando e cimentando ele próprio, por prazer e para economizar ao clube o necessário para o prosseguimento de suas obras penosamente conseguidas. Mas ele parece ter se equivocado quanto aos desejos futuros, deu para perceber que a Academia do Mar não será seu derradeiro projeto. Logo ao final da reportagem, pediu para que a foto ilustrativa dela fosse tirada entre dois barcos, duas pequenas baleeiras recém-terminadas, na qual pretende colocar doze crianças, alunos da rede pública de ensino, a remar e a velejar. E que assim prossiga a relação entre o sábio Comodoro Magalhães e a cidade que escolheu para viver e criar seus filhos, e que a população aceite seu comentário final: “Ubatuba viveu muito tempo de costas para o Mar. Alguma coisa já está mudando, mas é preciso que todos se conscientizam de que a vocação por imposição geográfica, o futuro econômico e cultural da cidade é o Mar, e temos de estar voltados para ele”.

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