Coluna do Mirisola

Inconsciente Coletivo da Silva

Marcelo Mirisola

Não sei até quando vou ter o privilégio de me sentir um peixe fora d’água. De - ainda - reagir com estranhamento e espanto diante do movimento alheio. Só peço a Deus que me conserve o espanto. Enquanto isso estiver acontecendo, está tudo bem. Indo. Ao menos no que concerne ao alheio, porque da minha parte nem a retórica que ajambrei (ou a “minha voz”...) me convence de mais nada. Mas enquanto existir a subversão e o espanto, as coisas, repito, vão indo. Não diria que sob controle, porque se fosse esse o caso, eu não estaria aqui, nesse momento, tentando entender o que aconteceu comigo no final de semana passado. Vale que estou na ativa, livre para dar meus pitacos. Sem compromisso nenhum com a verdade ou a verossimilhança, isso que é melhor: na condição de cascateiro, manipulador, curioso, chamem como quiser.

Uma vez perguntaram a Barthes se a maneira pela qual ele interpretava as entrelinhas não era – per se - uma subversão no mais alto grau. E ele deu uma resposta devastadora. Eu acredito que não dá para atravessar uma rua sem levar isso em consideração.

Aspas: “ Penso que seria muito pretensioso da minha parte pensar que sou um subversivo. Mas diria que etimologicamente sim, tento subverter. Quer dizer, tento vir por debaixo de um conformismo, de uma forma de pensar que existe e deslocá-la um pouco. Não se trata de revolucionar, mas de trapacear um pouco. Aligeirá-las. Torná-las mais móveis. Fazer ouvir uma dúvida. E portanto, de abalar sempre o pretenso natural, a coisa instalada”.

Roland Barthes sabia se divertir. Tirar uma onda da cara dos otários. Se o autor de “Mitologias” trapaceava por que eu não posso cometer singelamente umas mentiras para dizer a verdade (ou vice-versa)? Acho que a resposta de Barthes vai ser útil para quem, um dia, pensou em chegar n’algum lugar menos enfadonho que os trocadalhos do José Simão.

Voltando ao final da semana que passou. Para entender o que aconteceu no teatro Sergio Porto, tenho que, além de concordar com o filososo francês, vencer dois obstáculos; o primeiro é não ser chato, e o segundo é investigar esse tal de inconsciente coletivo. Ou melhor, boliná-lo. Não levá-lo a sério. Porque é a ele que chego toda vez que procuro entender o que aconteceu nos outros finais de semana que, há 43 anos, insistem a passar sobre mim. Quem vos fala é o atropelado, portanto.

Antes de seguir adiante, quero fazer um esclarecimento: eu podia estar falando de um jogo de futebol. De um eventual travesti que teria dormido com o Berlusconi. Mas vou falar da minha Velha Apresentadora – que fez duas aparições no teatro Sergio Porto,no Rio de Janeiro. O que importa não é “minha peça”. Não é “A Velha” . Mas a reação diante de um acontecimento coletivo.

Beleza, vamos em frente. No sábado, eu vi fulano se contorcer de tanto rir, e quase cair da cadeira diante do absurdo que é aquela Velha. Embora isso tenha começado a acontecer tarde demais. A partir da quinta ou sexta piada. Tudo bem. Vale que a Velha Apresentadora funcionou e a platéia pegou no tranco, digamos assim.

Já no domingo, inclusive com uma platéia mais numerosa, a coisa não chegou onde eu imaginava. Foi a platéia mais glacial que tive oportunidade de acompanhar, desde que a Velha entrou em cartaz, faz cinco meses. Do começo ao final da peça, a reação foi de absoluta tímidez, contenção, frio. Segundo Alberto Guzik, que interpreta A Velha, isso não quis dizer que não fomos bem-sucedidos, pois teríamos atingido “outro lugar”.


E é aqui que começa essa crônica. Imagino que esse lugar deva ser o inconsciente coletivo. Inconsciente coletivo de 50 pessoas, vá lá, mesmo assim inconsciente e, mesmo assim, coletivo. Sejamos generosos, porque daqui pra frente vou ser grosseiro como sugeriu Barthes, e tentar ser o menos chato possivel. Para Jung, o dito cujo é a camada mais antiga da memória humana, o carregamos indepentemente das nossas experiências pessoais. Borges o chamou de Aleph. Um lugar onde não necessiamente trocamos idéias, mas nos comunicamos. Onde a afinidade é apenas um capricho. É o lugar dos arquétipos. Catucou ali vai dar curto-circuito, alguém vai se abalar aqui, na América pré-colombiana ou no blogue do poetinha que acabou de convidá-lo para um Sarau n’alguma livraria da Vila Madalena.

Independe do espaço, do tempo e do lugar. E da pessoa também. Pode acontecer no bar esquina, acompanhado do seu duplo – fato corriqueiro na vida de Julio Cortázar, por exemplo.

Isso – em tese – explicaria tanto a histeria com relação à morte de Michael Jackson, a falta de talento do poetinha carente, como a necessidade de consultar o horóscopo antes de sair de casa. Você pode perfeitamente duvidar da existência do verso alexandrino, do zodíaco e do Michael Jackson, mas eles existem. Pode apostar que sim.

A boa notícia é que você tem a opção de ignorá-los, a má notícia é que eles sempre vão se lembrar de convidá-lo para os respectivos saraus, adivinhações e enterros. Sabe por quê? Porque você também faz parte dessa massaroca. Como se Jung dissesse: o ideal seria acreditar em Freud, mas todos nós sabemos que ele era apenas um grande escritor.

Continuando a ser grosseiro. Eis que aparece um tal Erich Fromm e apresenta outra posição a respeito. E diz que o inconsciente coletivo de Jung na verdade é o inconsciente social. Ou uma parte específica da experiência dos seres humanos que é vedada à consciência da maioria das pessoas. Segundo Fromm, que era alemão e fugiu do nazismo, o inconsciente coletivo seria o fruto de uma repressão social. E eu aqui, com os meus botões, confesso que já tive simpatia por essa tese... vejam só. Com treze anos achava o Caetano um gênio... O problema é que Fromm falou isso numa época em que o danado do inconsciente (tanto faz se coletivo ou social) estava mesmo escondido, agindo apenas nas entrelinhas que tanto serviriam às manipulações e trapaças de Barthes como aos interesses de marxistas que – desde sempre – farejavam a inexorabilidade funesta do capitalismo e tinham de justificar a própria orfandade. Manipulá-lo, ao tal do inconsciente, era privilégio de poucos. Orixás. Deuses, Arquétipos. Revolucionários, Heróis. Canalhas principalmente. Mas poucos.

O século vinte, aliás, foi pródigo em trapaceiros maravilhosos. Duchamp, Che Guevara, Hanna & Barbera. E eu posso afirmar com convicção que eles deram sorte, uma vez que – quando trapacearam - Pandora ainda era uma virgenzinha inocente. Todavia, nos anos sessenta, Timothy Leary, “o papa da contracultura”, deu uma espiada no gambazinho de Pandora, digo, “catucou a mardita” e expandiu o tal do inconsciente que – eis a questão... - deixaria de ser coletivo ou social para começar a virar uma putinha de rodoviária. Mas para chegar a uma Geni de R$1,99, ele, o tal do Inconsciente Coletivo, contou com a ajuda de um Nerd demoniaco chamado Bill Gates que, sem precisar pôr o dele na reta, o trancou num sótão batizado de Microsoft, em 1975.

E é claro que o gênio re-engarrafado nunca mais foi o mesmo. Antes de voltar pra Caixa das Maldições, passou por experiências bizarras no estacionamento do Parque do Anhembi, onde foi currado por dez mendigos e deu sua primeira cachimbada de crack. Voltou pra garrafa maldita com o rabo sujo entre as pernas, e Pandora simplesmente viraria Geni. Desculpem a grosseria, mas vou pular 30 anos desde que Bill Gates fez esse resgate infernal, e chamarei isso de Internet.

Nesse lugar, qualquer um pode ser herói, canalha, Deus ou o diabo, tanto faz. Todos são arquétipos. Até seu filho. Isso mesmo, somos iguais ao punheteiro do seu filho que passa as madrugadas na frente da tela do PC acompanhado de 93 personagens virtuais numa simulação(?) de guerra cósmica. O nome disso é Dota All Stars ou o ciberespaço que o cabação do Leary foi dar uma banda, e até hoje não conseguiu voltar; sem exagero, posso dizer que Timothy Leary é a primeira besta encantada da Era de Aquário.

Bem, a partir daí – inopinadamente – somos paridos, solicitados e pulverizados todos os dias sob várias formas e conteúdos. Um Deus não pode estar ausente. Nem se ele for o filho enjeitado de um Nerd dos infernos com uma Pandora que dá pra qualquer um.

Faz dez anos que viramos o milênio. Bin Laden resiste! Num lugar onde as hemorróidas da Ana Maria Braga são mais relevantes que o novo livro do Reinaldo Moraes. Bem-vindos à era do boteco de paulista, dos parelelepípedos de isopor, das platéias glaciais. Apesar da rebarba, do entulho do século vinte que aqui e acolá agoniza em praça pública (não dá para me excluir) ainda assim, é seguro afirmar que, além de ultrapassada, minha geração deu muito azar. Tínhamos logo que ser contemporâneos do Incosciente Coletivo da Silva, sobrinho-bisneto do Sobrenatural de Almeida, velho compadre de Nelson Rodrigues. Que teve a felicidade de viver numa época cujas platéias e os seus respectivos humores eram corrompidos por um inconsciente menos vira-lata, menos broxante.

Eis aqui minha torpe explicação para o que aconteceu no domingo passado. E é claro e evidente que não estou satisfeito – isso significa que, apesar dos pesares, ainda quero me iludir, quero trapacear com as platéias. A propósito: A Velha Apresentadora voltou. Ela vai fazer suas aparições no Satyros 1, na Pça. Roosevelt, em São Paulo. Em novos dias e horários. Aos sábados às 19 horas e aos domingos às 18h:30 min. Tenham todos uma boa semana. E divirtam-se.

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


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