Da Boa Terra

A feijoada

A filha olhou para a mãe que olhou para a filha, que suspirou e continuou olhando para a mãe. Fazia muito calor. Ao lado da mãe, perto da janela com defeito, apenas entreaberta, sentava-se um cidadão afro-brasileiro, imenso, cuja cabeça parecia uma gigantesca jabuticaba, na cor, na forma e no brilho. Os olhos saltados também se assemelhavam a duas jabuticabas, e a boca, bem a boca era um caso à parte. Situada abaixo de um nariz que parecia ter sido amassado por uma motoniveladora, a boca era larga qual o Rio da Prata, o mais largo do mundo. Boca de garoupa. O lábio inferior era carnudo, lembrava um charuto disposto horizontalmente. O homem, de idade indefinida, entre quarenta e sessenta anos, vestia um terno branco muito limpo e cheirava a lavanda. A cabeça era totalmente raspada. O ônibus jogava. De pé, ao lado da mãe viajava Serginho Terrô, cujo terrô era uma abreviatura de terror, apelido jocoso de um bom rapaz, que morava com a mãe viúva e trabalhava no Banco do Brasil. Terrô voltava de uma feijoada na qual comeu como um animal, além de ter tomado cinco caipirinhas, uma dose de vodka e dois uísques sem gelo. O ônibus entrava veloz nas curvas, o calor era de rachar, Serginho ia de cá pra lá e voltava de lá pra cá. O mundo rodava. De vez em quando esbarrava na filha, que olhava para a mãe, que olhava para a filha. De repente o jato passou zumbindo ao lado da cabeça da filha e atingiu em cheio a cabeça africana do afro-cidadão. Depois escorreu pelo pescoço e pelos ombros, tingindo de preto o que antes era a mais pura alvura. Terrô, sem saber direito que atitude tomar tirou com a mão um pedaço de bacon e uma ligüicinha da sobrancelha direita do impassível boca de garoupa. A filha olhou pra mãe, que olhou pra filha que disse: - que cheiro ruim minha mãe. É sim minha filha, é feijoada. Vamos descer? Deram sinal, desceram e foram caminhando pela orla de Salvador, a filha olhando para a mãe, que também olhava para a filha. Calor arretado, de rachar pedra... (Sidney Borges)

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