Naquele tempo
A minha primeira Paixão de Cristo foi no “Pavilhão François”, circo-teatro de alumínio que todos os anos era montado no terreno da esquina de casa. Era um terreno grande, depois construíram nele uma fábrica de carrocerias. Naquela época, início de 1952, eu nem desconfiava o que fosse paixão e não sabia quem era Cristo, tinha pouco mais de três anos e fui levado pela família, meu pai, minha mãe, minha avó, meu avô e uma tia que estava nos visitando. Minha avó teve muito trabalho para me explicar o que estava acontecendo quando colocaram o homem que eu vi beijando a Fernanda, nossa vizinha, na cruz. Não gostei do espetáculo. Desde aquela época detesto quando o mocinho morre. Durante dois anos eu não me lembro de ter ido ao Pavilhão François, mas vi outras versões da Paixão na televisão do tio Marques, em preto e branco, a família e a vizinhança chorando, eu e meu primo espantados. Um ano depois fui traído. Minha avó me convidou para assistir ao Mártir de Golgota. Imaginei alguma coisa excitante, no gênero do Falcão Negro. Ledo engano. Acabei assistindo à mesma velha e conhecida história, com outro nome. Tudo igualzinho, a cruz, Maria Madalena, os ladrões, a novidade ficou por conta da pedra do túmulo de Jesus que emperrou e ele quase não ressuscita. A cortina fechou, ouvimos um barulhão e quando abriu o milagre aconteceu. Lá estava Miguelzinho, digo Cristo, novinho, pronto pra outra. Em tempo, em 1957 a Fernanda ficou grávida. Foi um baita escândalo. O pai dela, seu Julião, trouxe o Miguelzinho do Mato Grosso. O casamento foi muito legal, me lembro até hoje do bolo em forma de circo. No ano seguinte eu tinha entrado na fase dos super-heróis, Capitão Marvel, Tocha Humana, Superman, Fantasma, Supermouse, Príncipe Submarino e outros que não recordo. Eu já sabia ler e quando li nos cartazes que a próxima atração seria o Capitão Furtado, fiquei louco de vontade de ir. Um capitão em carne e osso. Era tudo o que eu queria. Minha avó percebeu a excitação e fez a proposta. Eu iria com ela ver a Paixão e ele iria comigo ver o Capitão Furtado. Combinado. Logo eu estava mais uma vez diante do martírio de Jesus, com os romanos sádicos dando chicotadas e as velhinhas ao meu lado chorando. Minha avó inovou, estreou um terço de pedrinhas verdes, abençoado em Lourdes. No dia do Capitão Furtado, tive uma das maiores decepções da vida. O nome era um engodo, ele não era herói. Era apenas um gordinho careca parecido com o seu Alberto açougueiro. O impostor tinha um programa de rádio de duplas caipiras, o que me fez desejar que o presidente Juscelino criasse uma lei para pôr na cadeia quem enganasse crianças. Naquela noite o baterista dormiu e caiu do palco. Meu pai disse que ele tomava todas, acho que foi exagero. Se ele tomasse todas não sobrava nada pro Pé de Pato que também entornava pra valer. Tenho saudades do Pavilhão François.
Sidney Borges
Sidney Borges
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