O 14 Bis voa!
O 14 Bis voa, como há 1 século
Aficionado pela história de Santos Dumont constrói cópia exata do avião que revolucionou o mundo em 1906
Valdir Sanches
Não era a grama do Campo de Bagatelle, em Paris, mas o concreto da pista de um aeroporto moderno, o de Caldas Novas, em Goiás. O 14 Bis posicionou-se, com sua estrutura de bambu e madeira, coberta por seda. No cesto de vime - o lugar do piloto - estava um empresário goiano, apaixonado por Santos Dumont e sua obra.
O 14 Bis construído por Alan Calassa é uma cópia perfeita do original. Quem o vê pode achar, por um momento, que está diante do próprio avião do Pai da Aviação. Mas a pergunta fica zunindo na cabeça: vai voar? O sol já estava baixo - eram quase 6 da tarde (18 horas) da segunda-feira - quando o motor do 14 Bis de Calassa começou a roncar.
Vai voar? O avião se move. Subitamente começa a correr e... decola. Um vôo curto (outros mais longos se seguiriam), parecido com o primeiro de Santos Dumont, em 23 de outubro de 1906, em Bagatelle: 75 metros, a 3 metros do solo. Cem anos depois, o 14 Bis estava de volta aos céus.
Quando iniciou a corrida para a decolagem, em Bagatelle, o 14 Bis de Santos Dumont era um veículo motorizado correndo pela grama. Nada que um automóvel (inventado duas décadas antes) não pudesse fazer. O que, então, o brasileiro adicionou à máquina, que a fez voar?
SEGREDOS
Asas, simplesmente, não bastariam. É verdade que Dumont (como já fizera Da Vinci) havia estudado profundamente a curvatura das asas dos pássaros. As do 14 Bis tinham uma angulação (formando um V) muito forte. E o ângulo de incidência, para fazer o vento entrar por baixo da asa, e forçá-la para cima, era perfeito. Tudo favorável para o vôo. Desde que esse ocorresse.
A parte fundamental para a decolagem ficava na proa, a frente do avião. O corpo do 14 Bis não partia das asas para trás, como os futuros aviões. O corpo se desenvolvia das asas para a frente. Na ponta desse corpo, destacava-se o nariz, um quadrado lembrando um caixote vazado.
Dumont instalou, na cabine de comando (uma cestinha de vime, só para um, magro), o manche. Uma alavanca que, por meio de cabos de aço (na verdade, cordas de relógio de igreja) faziam o caixote lá na frente mover-se para cima e para baixo.
Para cima, induzia o vento a levantar a frente do avião - e baixar a traseira, a popa. Ou seja, deixava o avião apontado para o alto. O motor o impulsionava nesse sentido. Assim, o 14 Bis voou.
Uma vez em vôo, era preciso controlar o avião para que não saísse para a esquerda ou para a direita. Dumont girava uma rodinha tirada de uma máquina de costura (com eixo de bicicleta), instalada junto da cestinha. Assim comandava cabos de aço para obrigar o caixão vazado a mover-se - agora para um lado ou para o outro. Com isso, mantinha o avião em linha reta.
Mas o avião em vôo poderia baixar uma asa, ou outra. Santos Dumont criou um comando para controlar esses movimentos, mas tinha um problema. Faltavam-lhe mãos. A mão direita controlava o manche e premia o acelerador a ela acoplado. A esquerda manejava a rodinha de máquina de costura.
O inventor criou então uma cruzeta, que ia costurada ao paletó. A cruzeta tinha elásticos ligados a cabos de aço. Estes faziam abrir ou fechar um painel (no padrão bambu e seda), instalado no fim das asas. O vento recebido no painel aberto corrigia a posição da asa.
E como Dumont acionava os elásticos presos às suas costas? Movendo o corpo. Inclinava o corpo à direita ou à esquerda, o elástico esticava, acionava o cabo de aço e fazia o painel abrir ou fechar na asa da esquerda ou da direita.
ESTUDO DO PASSADO
Alan Calassa estudou cuidadosamente esses mecanismos usados por Dumont. Na verdade, partiu do zero, porque a planta do avião não existe mais. Correu mundo, leu muito, pesquisou e teve o apoio de especialistas.
Aos 43 anos, piloto há 27, sem formação universitária, mas desde a infância fascinado por Santos Dumont, Calassa conseguiu refazer o projeto (a planta) do 14 Bis. "Comparando fotos, parti da altura do Santos Dumont, e das rodas do avião, de aro 26, para calcular as medidas exatas."
O 14 Bis tem 9,6 metros de comprimento, 11,7 metros de envergadura (de uma ponta a outra da asa) e 3,72 metros de altura (nas pontas das asas). Pesa 220 quilos. Como prova de que as medidas da réplica são as mesmas do original, Calassa fala do cesto de vime onde o piloto fica. "Depois de tudo pronto, descobri que o cesto original estava em Cotia. Fui medi-lo e constatei que tinha a exata medida do cesto que construíra."
Tudo muito bem, mas como se faz um 14 Bis? Calassa conseguiu, no País, cana-da-índia, um tipo de bambu comum na Europa. E o frejó, madeira leve e resistente. Com o primeiro, fez o caixão central, o corpo do avião. Com o outro, o berço do motor e do cesto (para magros: 25 centímetros de boca).
O caixão central foi recoberto por seda japonesa. Para impermeabilizá-la, Calassa, como Dumont, engomou-a com um grude à base de polvilho, o mesmo com que, antigamente, se engomavam paletós. Depois, uma fina camada de goma-laca.
Do mesmo material foi construído o nariz do avião, o quadrado que lembra caixão vazado (e sugere um bico e, por isso, foi chamado canard, pato). A seguir, asas: quatro longarinas de madeira e cana-da-índia trançadas com cordas de piano e relógio de igreja, recobertas pela seda. Todas as peças foram feitas separadamente. Unidas (com junções metálicas) começaram a dar cara ao 14 Bis.
O manche original era a alavanca de freio de mão do Peugeot do próprio Santos Dumont. Calassa usou alavanca mais convencional. No manche, está instalado o acelerador manual. Com a mão direita, Dumont, como Calassa agora, manobrava o manche e apertava o acelerador (na réplica, um manete de Mobilete).
Calassa colocou roda pequena de bicicleta no lugar da de máquina de costura, usada por Santos Dumont (que comanda cabos e impede o avião de sair para os lados). As duas rodas do que hoje se chama trem de pouso também são de bicicleta, com eram as originais.
E os elásticos presos ao corpo do piloto, para mover o painel existente em cada uma das asas (e evitar que elas baixem), dispensaram a cruzeta cosida ao paletó. Calassa fez duas alças, que se cruzam no peito, como quem usasse duas bolsas.
MOTOR E HÉLICE
O motor é um V8 de 50 hp. Dumont mandou um amigo construir. Calassa fez o mesmo, observando rigorosamente a concepção original. A hélice é formada por dois tubos de aço e as pás, de chapa de alumínio, nas pontas. O inventor criou uma mecanismo para regular o passo da hélice (quanto mais abertas as pás, mais seguram vento, mais giram e mais velocidade proporcionam). "Ele ajustava a hélice para dar o giro certo no motor", diz.
O motor de Dumont era acionado por manivela (Calassa gira a hélice). O 14 Bis usado pelo empresário para treinos (outro vai voar nos festejos deste ano em Paris) possui um cesto maior do que o original. Dumont pesava 52 quilos. Calassa tem 105 quilos. Não vê problemas. "O cesto é o centro de gravidade do avião. Pode pôr peso a mais, que tudo bem."
Fonte: Estadão
Comentários