Opinião

O Bonaparte ausente

Demétrio Magnoli
O "conservadorismo popular" elegeu Fernando Collor em 1989 e derrotou Lula por duas vezes, seguindo o projeto de estabilização econômica de FHC expresso no Plano Real. O lulismo nasceu do encontro entre o "conservadorismo popular" e a figura política na qual os pobres projetam a sua própria imagem. Mas tal encontro derivou da orientação política imprimida por Lula a seu governo. Na Presidência, o ex-metalúrgico promoveu a redução das desigualdades sociais dentro da ordem, capturando o eleitorado mais pobre, que é conservador. O lulismo configurou-se nesse movimento, afastando-se das águas do petismo e articulando, desde o alto, uma representação política para as camadas profundas da sociedade brasileira. O diagnóstico está num artigo do cientista político André Singer, ex-porta-voz de Lula (Raízes sociais e ideológicas do lulismo, revista Novos Estudos, Cebrap, novembro 2009).


Singer explica que o realinhamento não ocorreu antes, mas depois do primeiro triunfo de Lula. O ano fora da curva é 2002, quando o líder do PT venceu apoiando-se no seu eleitorado tradicional, concentrado nas camadas urbanas médias do Centro-Sul e aproveitando-se da insatisfação generalizada com o segundo mandato de FHC, que dispersou o voto dos mais pobres. Já em 2006, triunfou nos braços de um novo eleitorado, concentrado nas regiões mais pobres e conquistado pelos aumentos do salário mínimo, pela expansão do crédito popular e pelo Bolsa-Família. Sob o impacto do escândalo do "mensalão", que alienou parcela significativa do eleitorado de maior escolaridade, acentuou-se a substituição de uma base de apoio pela outra. Ao mesmo tempo, ampliou-se a liberdade de ação do presidente ante seu partido.

O lulismo emergiu de um deslocamento político estrutural que afastou Lula do PT. A Carta ao Povo Brasileiro, de 2002, e sua materialização na forma da continuidade da política macroeconômica de FHC delinearam um programa de manutenção da ordem incompatível com as proclamações petistas. Singer não o diz, mas sobre essa plataforma o lulismo associou-se aos interesses das altas finanças e do grande empresariado, funcionando como ponte entre o estreito vértice e a ampla base da pirâmide social brasileira.

Na linguagem de inspiração marxista utilizada por Singer, Lula realizou "um completo programa de classe" - mas o do "subproletariado", não o da "classe trabalhadora organizada". A conclusão, uma óbvia impropriedade, sustenta-se apenas na fantasia ideológica segundo a qual Lula "constituiu" o subproletariado "como ator político". Contudo, diante das primeiras eleições sem a presença de Lula desde o fim da ditadura, mais útil que criticá-la é indagar sobre o significado da incongruência entre lulismo e petismo.

O artigo de Singer quase não toca no petismo. Mas o lulismo está irremediavelmente conectado ao petismo, pois Lula não conseguiu levar adiante seu acalentado projeto de erguer um partido "lulista". O presidente não dispõe de outra máquina partidária senão a do PT, o que tem consequências.

O PT nasceu como coalizão nucleada por um tripé de sindicalistas emergentes, correntes esquerdistas influenciadas pelo castrismo e militantes católicos da "Igreja da libertação". A ampla coalizão agregava ainda social-democratas, trotskistas, ecologistas e libertários, que juntos conferiam plasticidade ao discurso petista, evitando a identificação do partido com a velha esquerda da guerra fria. Entretanto, a diversidade ideológica perdeu-se ao longo do tempo, enquanto se coagulava um aparelho partidário controlado pela nova elite sindical e por cliques de dirigentes stalinistas, ao redor do qual orbitam movimentos sociais dependentes do financiamento estatal. Há menos de duas décadas, em editorial, a revista teórica do PT condenou implacavelmente a ditadura castrista. Hoje, algo assim seria impensável.

A mudança teve repercussões paradoxais. Numa ponta, o PT que disputou as eleições de 2006 já perdera o apoio das camadas médias do Centro-Sul e de parte significativa da classe trabalhadora organizada, convertendo-se num caudatário eleitoral do lulismo. Na outra, o discurso petista deslizou rumo aos anacronismos da velha esquerda e às reivindicações segmentárias da miríade de movimentos abrigados sob o guarda-chuva do partido. A dupla tendência gerou um curioso sistema de intercâmbio entre o lulismo e o petismo.

Lula faz o que quer no campo da política econômica e das políticas sociais, ignorando olimpicamente o PT, que já renunciou até mesmo a espernear contra a ortodoxia do Banco Central. O presidente, contudo, oferece compensações ao partido, especialmente sob a forma da consagração oficial de plataformas formuladas por conferências de movimentos sociais patrocinadas pelo governo. O plano de direitos humanos constitui ilustração exemplar da dinâmica desse intercâmbio. Lula tem escasso interesse em levar adiante as iniciativas autoritárias previstas no documento, mas a proclamação do compromisso governamental com elas funciona como um troféu simbólico para o petismo.

Segundo Singer, "diante da dificuldade de ganhar eleições presidenciais só com a classe média, os oposicionistas não sabem para onde ir". A profecia do triunfo de Dilma Rousseff sobre José Serra foge ao campo das ciências sociais, inscrevendo-se na esfera dos desejos do analista. Mas, nessa hipótese, sob o influxo do lulismo chegará ao Planalto uma sucessora que, não sendo Lula, carece da relação especial estabelecida por ele com os mais pobres - e também, portanto, da "autonomia bonapartista" conquistada pelo presidente ante o petismo.
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