Deu no Estadão

'Ajuda humanitária converteu-se em projeto de poder'

Reginaldo Nasser: professor de relações internacionais da PUC-SP. Auxílio internacional como o que está em ação no Haiti é cada vez mais 'militarizado' e estratégico, diz professor

De Roberto Simon (original aqui)
Por trás do sincero discurso de ajuda às vítimas da tragédia haitiana, há um jogo de interesses nacionais cada vez mais explícito, afirma ao Estado o professor de relações internacionais da PUC-SP Reginaldo Nasser. Foi assim na ajuda aos países afetados pelo tsunami de 2004 ou pelo furacão Mitch, de 1998. "Com a ajuda humanitária, vem o direcionamento político", argumenta.

A tragédia no Haiti desencadeou uma avalanche de ajuda humanitária de vários países. Certamente há uma preocupação real com o povo haitiano. Mas quais são suas implicações geopolíticas?

Tem crescido muito o número de estudos sobre a relação entre ajuda humanitária e interesse nacional. Em casos como o Haiti existe um sentimento solidário, do qual as pessoas são tomadas - e Estados dão vazão a ele. Trata-se de um fenômeno antigo. A novidade é que, com o fim da Guerra Fria, o volume de ajuda cresceu exponencialmente. O Banco Mundial, por exemplo, aumentou em 800% o envio de recursos sob a rubrica "ajuda humanitária" desde o início dos anos 90. Hoje, o mesmo tema é responsável por 30% do orçamento do Pentágono. A ajuda humanitária transformou-se em um projeto político.

Há exemplos concretos sobre essa projeção de poder?

Um exemplo é o tsunami de 2004. Logo depois da tragédia, os EUA enviaram tropas de ajuda ao leste da Ásia, sabendo que o Congresso americano vetava a cooperação militar com a Indonésia por causa da herança da ditadura de Suharto. Sob o argumento da ação humanitária, houve uma reaproximação militar e, ao final, a Casa Branca reverteu o bloqueio do Legislativo. Também com esse tsunami, houve uma aproximação de Washington com o Sri Lanka, que tentava exterminar a guerrilha tâmil. Enfim, por causa do tsunami, os EUA fizeram um grande investimento militar na região.

Imagino que essa reaproximação não se limite à dimensão militar.

Há um aspecto econômico fundamental. Quando houve o furacão Mitch na América Central, em 1998, o Banco Mundial e o FMI ofereceram uma ajuda significativa, mas condicionaram o envio a reformas econômicas. Honduras foi pressionada a privatizar seus portos, aeroportos e sistemas de comunicação. Na ajuda configurou-se um direcionamento do rumo de política econômica que o país devia tomar.

Os EUA parecem ter visto na tragédia do Haiti uma chance de reforçar sua imagem de "potência benevolente".

Sem dúvida, mas isso sempre existiu. Os EUA têm um sentido missionário, o velho discurso de estender a mão aos povos independentemente de fronteiras. Mas isso ocorria também na Guerra Fria. Na tragédia, americanos são os primeiros a se manifestar.

Por quê?

Por duas razões: além da ideológica, os EUA são a única potência com meios para agir de imediato. Washington tem bases, soldados, navios e aviões no mundo todo. É interessante também notar que a preparação para a guerra tornou-se a mesma que para a ajuda humanitária. Há uma militarização da ajuda humanitária.

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