Opinião
Barack contra a jihad
Demétrio Magnoli
Há 45 anos, no Cairo, veio à luz o manifesto da jihad contemporânea. Escrito no cárcere, por Sayyd Qutb, líder da Irmandade Muçulmana, Milestones profetizava: "A liderança do homem ocidental no mundo humano está em declínio, não porque a civilização ocidental esteja em bancarrota material ou tenha perdido sua força econômica ou militar, mas porque a ordem ocidental já cumpriu sua parte, e não mais possui aquele acervo de valores que lhe deu sua predominância. Chegou a vez do Islã." Há uma semana, no mesmo Cairo, Barack Obama contestou Qutb. Não por meio de uma contraposição entre o Ocidente e o Islã, mas pela evocação de valores universais, que são patrimônios humanos. O discurso presidencial enfureceu tanto os arautos jihadistas do terror global quanto os intelectuais neoconservadores que moldaram a política mundial de George W. Bush.
Qutb morreu na forca em 1966, condenado injustamente pelo regime nacionalista de Gamal Abdel Nasser, mas seu irmão Muhammad exilou-se na Arábia Saudita e, com outros líderes egípcios foragidos, difundiu a bandeira do jihadismo entre a elite saudita. Em 1979, 1.500 militantes jihadistas tomaram a Mesquita de Meca, deflagrando a guerra civil que prossegue até hoje no mundo do Islã. Obama falou para os muçulmanos, concitando-os a voltar as costas para os fanáticos e resgatar o Islã das mãos dos apóstatas. A sua "guerra ao terror" é travada com palavras, mais que com mísseis.
"Enquanto a nossa relação for definida por nossas diferenças, entregaremos o poder àqueles que semeiam o ódio ao invés da paz e promovem o conflito no lugar da cooperação (...). Esse ciclo de suspeita e discórdia precisa terminar." A Al-Qaeda emanou da dissidência jihadista do Islã, que assumiu os contornos de um exército de fiéis nos campos de batalha do Afeganistão durante a guerra contra a ocupação soviética. Os herdeiros de Qutb, reunidos na rede de Osama bin Laden, almejam a restauração do califado islâmico e a imposição da Lei do Livro sobre todos os muçulmanos. Obama está dizendo que essa invocação do Islã literal não é apenas uma negação da modernidade, mas uma negação do próprio Islã.
O presidente americano falou na Universidade do Cairo, fundada pelo califado fatimíada no século 10, associada à Mesquita Al-Azhar e consagrada à propagação da cultura islâmica. Obama exaltou a civilização islâmica, "que carregou a tocha do conhecimento, pavimentando o caminho para a Renascença europeia e as Luzes", pela sua capacidade de inovação nos campos da álgebra, dos instrumentos de navegação, da tipografia, da medicina, da arquitetura. Ele reconheceu os "conflitos e guerras religiosas" entre o Ocidente e o Islã, mas rejeitou a imagem de dois monólitos contraditórios, acocorados nos casulos de dogmas inconciliáveis. O Islã está no Ocidente e o Ocidente está no Islã - eis a mensagem do discurso programático que explode como uma bomba nas fortalezas ideológicas encravadas nos dois lados de uma fronteira ilusória.
"EUA e Islã não são exclusivos e não precisam ser rivais. Em vez disso, eles se intersectam e partilham princípios comuns - princípios de justiça e progresso, tolerância e dignidade de todos seres humanos." Obama falou para os muçulmanos, mas também para os ocidentais, mirando especialmente os orientalistas que formularam a doutrina da guerra de civilizações. Bernard Lewis, o príncipe dos orientalistas, definiu cedo um ponto de vista inegociável: investigando os arquivos otomanos, convenceu-se de que a cultura muçulmana contém um pecado original, expresso como resistência irremovível à mudança. Depois, fiel à chave interpretativa, cunhou a expressão "choque de civilizações" e sustentou que Islã e Ocidente colidem desde o século 7º, quando se ergueu o primeiro califado. Na sua perspectiva, Islã e Ocidente definem-se por culturas inapelavelmente separadas - e a salvação do primeiro depende da eventual negação de sua "essência", pela adoção dos valores do segundo. Recusando as categorias fixas de Lewis, Obama liberta os EUA da armadilha cruzadista que desnorteou sua política mundial depois do 11 de setembro de 2001.
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Demétrio Magnoli
Há 45 anos, no Cairo, veio à luz o manifesto da jihad contemporânea. Escrito no cárcere, por Sayyd Qutb, líder da Irmandade Muçulmana, Milestones profetizava: "A liderança do homem ocidental no mundo humano está em declínio, não porque a civilização ocidental esteja em bancarrota material ou tenha perdido sua força econômica ou militar, mas porque a ordem ocidental já cumpriu sua parte, e não mais possui aquele acervo de valores que lhe deu sua predominância. Chegou a vez do Islã." Há uma semana, no mesmo Cairo, Barack Obama contestou Qutb. Não por meio de uma contraposição entre o Ocidente e o Islã, mas pela evocação de valores universais, que são patrimônios humanos. O discurso presidencial enfureceu tanto os arautos jihadistas do terror global quanto os intelectuais neoconservadores que moldaram a política mundial de George W. Bush.
Qutb morreu na forca em 1966, condenado injustamente pelo regime nacionalista de Gamal Abdel Nasser, mas seu irmão Muhammad exilou-se na Arábia Saudita e, com outros líderes egípcios foragidos, difundiu a bandeira do jihadismo entre a elite saudita. Em 1979, 1.500 militantes jihadistas tomaram a Mesquita de Meca, deflagrando a guerra civil que prossegue até hoje no mundo do Islã. Obama falou para os muçulmanos, concitando-os a voltar as costas para os fanáticos e resgatar o Islã das mãos dos apóstatas. A sua "guerra ao terror" é travada com palavras, mais que com mísseis.
"Enquanto a nossa relação for definida por nossas diferenças, entregaremos o poder àqueles que semeiam o ódio ao invés da paz e promovem o conflito no lugar da cooperação (...). Esse ciclo de suspeita e discórdia precisa terminar." A Al-Qaeda emanou da dissidência jihadista do Islã, que assumiu os contornos de um exército de fiéis nos campos de batalha do Afeganistão durante a guerra contra a ocupação soviética. Os herdeiros de Qutb, reunidos na rede de Osama bin Laden, almejam a restauração do califado islâmico e a imposição da Lei do Livro sobre todos os muçulmanos. Obama está dizendo que essa invocação do Islã literal não é apenas uma negação da modernidade, mas uma negação do próprio Islã.
O presidente americano falou na Universidade do Cairo, fundada pelo califado fatimíada no século 10, associada à Mesquita Al-Azhar e consagrada à propagação da cultura islâmica. Obama exaltou a civilização islâmica, "que carregou a tocha do conhecimento, pavimentando o caminho para a Renascença europeia e as Luzes", pela sua capacidade de inovação nos campos da álgebra, dos instrumentos de navegação, da tipografia, da medicina, da arquitetura. Ele reconheceu os "conflitos e guerras religiosas" entre o Ocidente e o Islã, mas rejeitou a imagem de dois monólitos contraditórios, acocorados nos casulos de dogmas inconciliáveis. O Islã está no Ocidente e o Ocidente está no Islã - eis a mensagem do discurso programático que explode como uma bomba nas fortalezas ideológicas encravadas nos dois lados de uma fronteira ilusória.
"EUA e Islã não são exclusivos e não precisam ser rivais. Em vez disso, eles se intersectam e partilham princípios comuns - princípios de justiça e progresso, tolerância e dignidade de todos seres humanos." Obama falou para os muçulmanos, mas também para os ocidentais, mirando especialmente os orientalistas que formularam a doutrina da guerra de civilizações. Bernard Lewis, o príncipe dos orientalistas, definiu cedo um ponto de vista inegociável: investigando os arquivos otomanos, convenceu-se de que a cultura muçulmana contém um pecado original, expresso como resistência irremovível à mudança. Depois, fiel à chave interpretativa, cunhou a expressão "choque de civilizações" e sustentou que Islã e Ocidente colidem desde o século 7º, quando se ergueu o primeiro califado. Na sua perspectiva, Islã e Ocidente definem-se por culturas inapelavelmente separadas - e a salvação do primeiro depende da eventual negação de sua "essência", pela adoção dos valores do segundo. Recusando as categorias fixas de Lewis, Obama liberta os EUA da armadilha cruzadista que desnorteou sua política mundial depois do 11 de setembro de 2001.
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