Crônica

Artigo 5º

Marcelo Mirisola*

Às vezes recebo uns telefonemas esquisitos. Já fui vítima de chantagem, intimidação e até de uma casa lotérica: sim, uma vez dividi a quadra num bolão com dezenove pessoas. Mas dessa vez, o susto foi maior:

--- Alô.

--- Sr. Marcelo Mirisola?

--- Sim.

--- Guerra Fortes, Polícia Federal.

Pronto – pensei – agora fudeu.

Falei mal de tanta gente nos últimos tempos que uma hora a coisa ia pegar pro meu lado. Impossível que o Ed Motta aguentasse tanta encheção de saco. Teria sido ele?

--- Pois não – falei esse “pois não” para forçar uma solenidade com o tal de Guerra Fortes... Polícia Federal, né? O que eu podia fazer? Me entregar?

Tanta gente podia ter feito uma queixa ... ou uma representação junto às autoridades competentes. Outro dia levei um soco na boca, de um cara insuspeito, boa gente. Sei lá, motivos (ou falta de) e maneiras pra me foder é o que não faltam. Teriam sido o Arnaldo Antunes e o Wisnik juntos?

Talvez as viúvas dos irmãos Campos. Os poetas bitiniques da padaria da esquina? Carlinhos Brown, hummm. Será? Taí. Depois da entrevista que fiz com o Aldir Blanc, não duvido nada. Embora – creio – se fosse pra fazer alguma coisa, o Carlinhos agiria mais no campo metafísico, não é a cara dele acionar Polícia Federal. Quem? A Associação dos Escritores Fofos da Mercearia São Pedro? Tanta gente... que – pensando bem – eu acho que não foi nem o Brown e muito menos o Ed Motta: esse cara, que estragou “Beatriz”, a canção mais bonita da MPB, ele próprio é mais ameaçador do que qualquer Polícia Federal nesse mundo. Quem ?

Com a palavra, Guerra Fortes:

--- Sou repórter especial da revista Artigo 5º.

--- Não estou entendendo nada. Desculpe, sr. Guerra Fortes.

A revista Artigo 5º – ele me explicou – é uma publicação dos delegados da Polícia Federal. Quando eu ia dizer que durmo cedo, e que – tirando o livro de São Cipriano – não faço uso de nenhuma substância ilícita, Guerra Fortes antecipou-se:

--- Só uma entrevista.

--- Ah, tá. Mas por que diabos a Polícia Federal queria me entrevistar? Como é que eles me acharam?

Guerra Fortes deve ter percebido minha voz embargada:

--- Pode ficar tranquilo, sua ficha está limpa. O pior é que eu sabia que não estava, tinha os manos do Hip Hop, a Preta Gil. Podia até ser o autor dos “bichos que existem e bichos que não existem”... Tanta gente querendo me dar uma prensa. Não descartei nem filhos do Simonal.

--- Sr. Mirisola?
--- Pois não.
--- Só uma entrevista.

O que eu podia responder? Então eu disse:

--- Pois não.

--- O senhor prefere que eu mande as perguntas por email?

Sim, eu preferia.

Então ele agradeceu, e disse que as perguntas já haviam sido encaminhadas. Como assim? Eles tinham meu email?

Claro que tinham. Óbvio, é a coisa mais fácil do mundo. Eu mesmo faço questão de publicá-lo em todos os lugares. Junto com minha conta corrente, será que a Polícia Federal sabia disso também?

Desliguei o telefone depois de dizer “pois não” pela décima vez, e comecei a matutar: Era quase certo que Guerra Fortes iria me inquirir sobre a Operação Satiagraha. Minha ideia era despistá-lo.

Eu diria que, hoje, “é muito fácil afirmar que Simonal é ‘o cara’... mas, na época em que o bicho pegou, bem, aí o papo era diferente”. Minha ideia era chamar Guerra Fortes à razão: “Você há de convir, meu caro Guerra, muita gente boa que, hoje, estufa o peito e grita meu limão meu limoeiro, enfiou o rabinho entre as pernas naquela ocasião. Foi ou não foi?”

Por que a PF não entrevista Nelson Motta?

Nesse meio tempo, fiz um Nescafé, reguei a samambaia – agora tenho uma samambaia em casa, foi a Cacá quem me deu – : “pra você cuidar de alguma coisa, vai ser um bom exercício”. Ah, Cacá...

Em seguida, acendi um cigarro, e da janela da cozinha vislumbrei o Pico do Perdido, pensei: Tudo a ver comigo; a samambaia, e essa pedra no meu caminho “Pico do Perdido”. Respirei fundo, soltei um peido e fui pro computador, não teve jeito. Havia chegado minha hora de encarar a Polícia Federal.

Abri a caixa postal, e lá estava o email de Guerra Fortes: “Sr. Marcelo Mirisola, encaminho as perguntas conforme a prévia que tivemos ao telefone”:

1ª pergunta de Guerra Fortes, repórter especial da revista Artigo 5º: “Através da literatura, o que você já conseguiu expurgar e o que ainda te atormenta?”

Ué, será que eles andaram lendo meus livros? Ou se tratava de uma pergunta cifrada para me pegar no desvio, no contrapé?

Resolvi ser o mais honesto possível, apesar das mil pulgas que faziam festa atrás da minha orelha. E respondi:

--- Houve um tempo que acreditei em expurgos. Achava que a literatura tivesse me curado de um monte de coisas. Bobagem, não é assim. Veja bem. Um garçom também (em tese) pode expurgar seus fantasmas trabalhando honestamente – com a vantagem de ter os seus 10% garantidos por lei e de não precisar administrar o ego dos comensais por mais de 40 minutos(em média). Em se tratando de expurgos, meu caro Guerra Fortes, existem passatempos mais seguros. Sim! Profissionais qualificados que cobram por hora. E nada que não garanta que a cura eventualmente (já ouviu falar em milagres?) possa se dar a céu aberto. Se eu pudesse escolher, velejaria. Literatura, se for da boa e original, serve apenas para acrescentar mais problemas na vida do autor. Não só problemas psicológicos, éticos, morais ou até mais triviais, como os de convivência social. Eu falo de problemas gravíssimos relacionados a vôos tonitruantes sobre abismos infernais, de vestimenta espiritual, sim, problemas de depressão puerperal (achei conveniente usar esse termo, “ mais técnico”) porque, a cada livro concluído, há que se reinventar a carne e o sangue, o suor e as lágrimas, para que caibam na mesma carcaça, não me lembro quem foi que disse que, essa carcaça que carregamos, é o arcabouço da alma. Eu penso que é exatamente o contrário, meu caro repórter. A alma que é a grande prisão! E não bastassem todos os problemas físicos e metafísicos, ainda temos o inconveniente de olhar para os dois lados antes de atravessar as ruas; confesso, já fiz isso com mais dedicação e afinco: hoje, porém, sou mais displicente – porque,entre tantos desacontecimentos, escolhi não sentir minha própria dor (cada um se desumaniza conforme suas possibilidades....) ah, meu caro, perdi a elegância. De modo que o ideal seria expurgar a literatura da minha vida, mas acho que não conseguirei chegar a tanto, nem depois de morto. Nem depois do próximo pé na bunda. Não tem expurgo, meu caro Guerra Fortes, não tem cura.

Guerra Fortes, repórter especial da revista Artigo 5º ainda me espremeu por mais 16 questões. Falamos de churros, de um biscoito que achei nas padarias aqui do Rio e que eu jurava que não existia mais, cujo nome sugestivo não é madeleine, mas “mentirinha”. A entrevista realmente ficou muito legal, falamos de um monte de coisas, consegui despistar Guerra Fortes (eu acho que sim...) e aproveitei para zoar com o Ed Motta. Enfim, quem quiser conferir a entrevista completa, basta procurar a revista Artigo 5º, a redação fica em São Paulo, na rua Nestor Pestana,125, cj.76.

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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