Coluna da Segunda-feira

Garimpando o passado

Renato Nunes
Em 7 de dezembro de 1509 Nicolau Maquiavel escreveu a seu amigo Luiz Guicciardini a carta que transcrevo abaixo, extraída do livro O Príncipe e Dez Cartas / Niccolo Machiavelli; tradução de Sergio Bath – Editora Universidade de Brasília – 3 ed. 1999.
Maquiavel foi um observador do comportamento político e deixou várias obras, a mais famosa O Príncipe, que é um guia para a ação política, até hoje uma referência para os estudiosos do assunto. Seu nome tornou-se um adjetivo que significa frieza, esperteza, astúcia, entre outros menos nobres. Mas era diplomático e relatava as coisas com muito senso de humor. Naquele tempo não havia fotografia, as cartas eram, então, o registro das cenas do cotidiano. Através delas se pode imaginar alguma coisa daqueles tempos.
Com vocês, Nicolau Maquiavel!

Um completo marasmo, Luiz. Vê como a sorte, num mesmo gênero de aventuras, serve os homens de modo diverso. Tu, mal te satisfazes uma vez queres voltar a satisfazer-te, e outra vez ainda. Quanto a mim...
Alguns dias depois de chegar aqui, transtornado pela abstinência conjugal, encontrei uma velha lavadeira que mora numa casa mais da metade soterrada, onde a luz só penetra pela porta. Reconheceu-me quando passava, fez-me muita festa e perguntou se não queria entrar para ver umas belas camisas que tinha à venda. Acreditei no que dizia, tal qual um jovem inexperiente. Entrei e percebi na penumbra outra mulher, o rosto e a cabeça cobertos com uma toalha, que se fazia de envergonhada, encolhida num canto.
A velha vivandeira me toma pela mão e me leva à outra, dizendo: “Eis aqui a camisa que quero vender. Pode experimentar, o senhor pagará depois.” Como sou tímido, fiquei sem saber o que fazer. Mas, deixado a sós com o objeto, e no escuro – porque a velha saiu e fechou a porta – tomei-a de um só golpe, para dizê-lo brevemente. A despeito das suas coxas flácidas, do rosto suado e o hálito fétido, tal era a minha urgência que cheguei ao fim desejado.
Depois, como queria ver a mercadoria, levei uma mecha às brasas do fogão e acendi uma lanterna que havia pendurada. Mal a chama ardeu, quase a lanterna me tomba das mãos. Ai de mim! Por pouco não caí desfalecido, tão horrível era a mulher.
Dela se via antes de mais nada um tufo de cabelos nem brancos nem pretos, de um cinzento sujo; o topo da cabeça era calvo, e a calvície revelava algumas pulgas a passear. Os fios rarefeitos escorriam até as sobrancelhas. No meio da testa, pequena e enrugada, exibia uma cicatriz vermelha que parecia marcá-la para o poste dos condenados, na praça pública. As sobrancelhas terminavam com feixes de pêlos plantados em verrugas. Os olhos eram de tamanho diferente, um mais baixo do que o outro, os cantos viscosos, revestidos de películas úmidas. O nariz, protuberante, uma das narinas cortada, cheia de muco. A boca lembrava a de Lourenço Médici, mas era torta de um lado e deixava escapar um filete de baba, porque, sem dentes, não conseguia reter a saliva. O lábio superior mostrava um buço de bom tamanho. O queixo, ao mesmo tempo pontudo e curvo, tinha uma dobra de pele que chegava à garganta.
Como me detivesse a contemplar o monstro, estuporado, ela tentou dizer: “O senhor está sentindo alguma coisa?” – mas não conseguiu falar, porque era tartamuda. E ao abrir a boca deixou escapar um hálito tão pustulento que meus olhos e o nariz, os mais delicados dos nossos sentidos, foram ao mesmo tempo e de tal forma feridos e irritados pela pestilência que o estômago também se revoltou e, para ser breve, fugi vomitando sobre a mulher, pagando-a assim com a única moeda que valia.
Tomo Deus por testemunha, não creio que volte a sentir desejo enquanto estiver na Lombardia. Tu deves agradecer aos céus ter encontrado o objeto de tuas delícias; eu lhes agradeço pela certeza de jamais voltar a sentir tamanho horror.
Acho que vou economizar algum dinheiro nesta viagem. De volta a Florença, desejaria lançar-me em um pequeno negócio. Pretendo iniciar uma criação de galinhas, e preciso encontrar um peão que cuide dela. Tendo sabido que Pedro di Martino conhece o assunto, gostaria que lhe perguntasses se estaria disposto a isso, transmitindo-me sua resposta. Se não estiver interessado, procurarei outra pessoa.
Giovanni te dará notícias daqui. Abraça Jacó por mim, e não esquece Marco.

Nicolau Maquiavel

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mosca-dragão

Pegoava?

Jundu