Roteiro

Filme de amor

Sidney Borges
Manuelzinho era filho único, paparicado e acariciado pelos pais que o tiveram depois dos quarenta. O menino era inteligente em todas as formas de inteligência possíveis, tirava notas altas na escola, era craque no futebol e tocava acordeon, piano e violão. Fazia um sucesso danado com as garotas, sua mãe tinha um enorme trabalho para atender os telefonemas que não paravam o dia inteiro. O menino estudava muito e para orgulho dos pais passou no concorrido vestibular de Medicina.
A vida caminhava bem até aquele fatídico sábado em Santos quando o jovem resolveu ir ao circo armado na divisa com São Vicente.
O espetáculo teve de tudo, engolidor de fogo, palhaço, cães dançarinos, urso ciclista, globo da morte e terminou apoteoticamente com o grande Calixto, o maior trapezista do mundo.
Quando o artista e sua troupe se dirigiram ao centro do picadeiro para cumprimentar o público começou o tormento de Manuelzinho. A assistente do trapezista tinha alguma coisa diferente no andar que pegou o jovem desprevenido. É difícil explicar, mas aquele balanço, aquela cadência, Manuelzinho nem prestou atenção ao salto triplo, tudo parecia desfocado, só havia luz em um ponto do circo, exatamente onde ela estava.
No final do espetáculo ele caminhou para casa atônito. Na verdade flutuou, levava cravada no peito a flecha certeira, uma daquelas que Cupido dispara contra mortais escolhidos. Há diversos tipos de setas, algumas ferem temporariamente e são absorvidas, outras apenas causam mal-estar, mas há também as definitivas. São poucas, mas quando ele escolhe alguém e lhe crava uma delas é para esta vida e outras mais que possam existir. Aquele balanço, aquele andar! Manuelzinho nem tomou o toddy que a mãe lhe preparava todas as noites. O sono demorou a chegar e na manhã seguinte embora o Sol estivesse bem humorado ele não foi à praia, correu para o circo. Surpresa! A lona estava no chão, o circo estava deixando a cidade. Conversando com o tratador dos macacos ele soube que os artistas tinham partido na madrugada e que o próximo destino seria Uberaba, em Minas Gerais.
Dona Clotilde chorou muito, mas não adiantou. O jovem trancou matrícula e resolveu seguir o circo, embora não tenha contado a verdade aos pais, disse que era uma viagem de estudos de moléstias tropicais.
E assim foi, mas como é sabido, o destino escreve histórias que não coincidem com os enredos das novelas, isto é, nem sempre as coisas caminham bem.
Depois de uma semana de estradas de terra o velho Land Rover 1954 estacionou na porta do circo, exatamente na hora em que as luzes se acendiam para o espetáculo daquela noite. Manuelzinho comprou uma cadeira especial, bem na frente do picadeiro. A emoção foi grande quando o espetáculo chegou ao ponto culminante. Lá estava ela com seu andar característico. Que andar! Que balanço!
Desta vez ela notou o guapo mancebo que não lhe tirava os olhos e no final sorriu para Manuelzinho, o que quase provocou um infarto no miocárdio do enamorado jovem. Ela sorriu para mim ele pensava, ela percebeu que eu existo, preciso falar com ela, preciso dizer que...
Bem caros leitores, volto a afirmar que nem tudo neste mundo é perfeito. Manuelzinho era bom filho, bom atleta, bom estudante, bom músico, muito educado, mas não conseguiu imaginar o que dizer à moça do andar enfeitiçante. Ele que escrevia tão bem e era elogiado pelos professores de português, ele que tirava as melhores notas nas chamadas orais, que sempre era escolhido como orador da turma, ficou subitamente mudo. O que dizer? E se ela não gostar de mim? A seta certeira de cupido começava a espalhar a peçonha da incerteza pelos canais invisíveis da alma, justamente onde as emoções são processadas.
O circo ficou oito dias em Uberaba e seguiu para Araguari, também em Minas Gerais. Durante quinze dias a cena se repetiu, ele na frente do picadeiro e ela sorrindo ao fim dos trabalhos.
Depois continuaram as viagens. Ipameri, Goiânia, Palma, Peixe, Porto Nacional , Pedro Afonso e Imperatriz, em Goiás. Carolina, no Maranhão e Marabá, Cametá e Belém, no Pará.
Já fazia um ano que Manuelzinho tinha posto o pé na estrada. Ele sempre escrevia para os pais dizendo que logo estaria de volta, que os estudos estavam no fim e que ele os amava muito.
No último dia do circo em Belém choveu muito, só três pessoas compraram ingresso, Manuelzinho e um casal de belgas. Na hora do trapézio a mulher belga que estava grávida enjoou e o casal se retirou.
O pessoal do circo já tinha notado o clima entre os dois, sutilmente sairam de cena e quando Manuelzinho, com o coração saltando qual canguru ensandecido deu pela coisa só havia eles no mundo.
Foi quando ele ficou sabendo que ela estava noiva de um rico industrial de Gênova e se casaria no mês seguinte. Manuelzinho vendeu o jipe embarcou em um 727 da Cruzeiro e retornou a São Paulo, onde continuou os estudos e se tornou plantonista do HC. Obviamente com o coração partido em zilhões de minúsculos fragmentos em frangalhos.
Aquele andar, ele jamais poderia esquecer o balanço daquele andar...
Dez anos depois, em uma noite no plantão chegou uma ambulância com uma mulher acidentada. O helicóptero havia caído e só ela sobreviveu. Manuelzinho, agora o respeitado doutor Manuel atendeu a mulher com a perna direita quase esmagada.
Os leitores podem imaginar o que ele sentiu enquanto fazia a cirurgia. Era ela! A mesma! Estava no Brasil acompanhando o marido a negócios.
A recuperação foi lenta e romântica, embora a timidez ainda o impedisse de falar dos tempos do circo. Não tinha a menor importância, eles tinham todo o tempo do mundo para conversar, ele a visitava diariamente até ela ter condições de ser removida. A família cuidou de enviá-la ao melhor hospital da Itália, em Milão.
Um ano depois doutor Manuel recebeu um inesperado convite. Cercado de pompas e circunstâncias e passagem de primeira classe. Era para visitar a ex-trapezista e ex-paciente que queria agradecer pessoalmente os cuidados que recebera. Os médicos italianos tinham sido unânimes em afirmar que a cirurgia tinha sido perfeita e salvado a perna acidentada.
O nome dela era Rita, já estava na hora das apresentações formais. Manuelzinho, digo doutor Manuel finalmente se viu frente a frente com a mulher que tanto o impressionara e que tantos transtornos trouxera à sua vida, embora de forma involuntária.
Depois de alguns dias de hesitação aconteceu o que costuma acontecer quando um homem e uma mulher se encontram. Foram para a cama onde passaram uma tarde inteira entre juras de amor e ação. Muita ação. Ação à beça! Depois do entrevero doutor Manuel, digo Mané, somos íntimos, posso tratá-lo assim, dormiu o sono dos justos, sentiu que havia cumprido uma obrigação para consigo mesmo, obrigação essa nascida naquele circo em Santos há muitos e muitos anos.
Quando finalmente acordou viu Rita caminhando em direção ao quarto de vestir. E pela primeira vez notou que ela caminhava sem nenhum balanço. Sem os trejeitos dos tempos do circo. Sem a graça que tanto o encantou.
Nos dias posteriores ela se tornou mais e mais carinhosa e ele mais e mais distante, pensativo, como que procurando a pista do Santo Graal perdido. O andar dela era agora semelhante ao de um granadeiro do sexto regimento de Napoleão. Decididamente ali não estava a mesma mulher pela qual Mané tinha movido montanhas e arrastado locomotivas. Era chegada a hora de colocar um ponto final na história, ele saiu para postar cartões no correio e retornou ao Brasil sem se despedir.
Rita ficou atônita, telefonou, enviou telegramas, emissários, sinais de fumaça, comprou um tambor e batucou mensagens em código Morse, mas nada adiantou, ele se fez de morto, ficou calado imaginando onde teria ido parar aquele andar que o enfeitiçou e que se perdeu de forma inexplicável.
Hoje eles são vizinhos. Ele tem 67 anos e ela 62. Todos os dias quando ele sai para o trabalho uma mulher misteriosa o cumprimenta, sempre usando véu. Quando ele volta à tarde ela está na janela. Ele tem a sensação que ela o espreita através das persianas. Um dia ele a viu saindo para a feira e a seguiu a uma distância prudente. É uma mulher de boa constituição, deve ter sido atlética, pensou. Conserva bom porte, mas o andar estraga tudo, faz lembrar um granadeiro do sexto regimento de Napoleão.
O amor é feito de encontros e desencontros, esta é uma história do segundo tipo. O culpado foi Cupido, que ao tirar a flecha do alforje deixou que tocasse na barra de couro. A eficácia foi perdida, ele se apaixonou apenas por um detalhe. Até os deuses erram, são deuses, mas foram criados pelos humanos.

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