A múmia

Do espaço sideral...

Apesar de 150 toneladas de meteoritos caírem na terra todos os anos, poucas pessoas são atingidas. Levar uma pedrada celeste é um presente dos deuses e dá clarividência ao escolhido. Eu levei uma e após certa confusão inicial entrei em transe. Pensei que veria Deus, fenômeno freqüente nas praias ubatubenses. Não foi dessa vez. Quando o denso nevoeiro se dissipou, logo após se formar, me vi no meio de um desfile. Uma banda tocava “Cisne Branco”. O homem dos pratos me fitou com insistência, parecia pensar: eu sei o que você está fazendo, seu verme. Apesar de não estar fazendo nada senti um frio na barriga. Olhei melhor e acabei por reconhecê-lo. Era o ex-presidente Costa e Silva, que costuma freqüentar meus pesadelos. Apesar de ter medo de ex-ditadores – e de ditadores - pensei em pedir um autógrafo, no entanto, quando olhei novamente a banda tinha desaparecido. No seu lugar estava postado Lenin. Ou melhor, a múmia de Lenin. Sem saber o que dizer, perguntei se ele(a) – eu nunca soube como me dirigir a uma múmia – falava português. Não obtive resposta, ele(a) examinava com atenção os arredores. Antes de continuar a narrativa devo explicar que estávamos na praia do Perequê-Açu, local dos mais propícios para acontecimentos insólitos. De repente ele(a) exclamou em português claríssimo, com sotaque de Coimbra:
- Aqui poderá ser um bom lugar.
- Bom lugar para quê? Perguntei curioso.
- Saudações revolucionárias camarada. Nem tinha notado a vossa presença, disse ele(a). Aqui será um bom lugar para continuar morto, estou cansado do frio de Moscou. Vou montar um mausoléu nestas plagas. Será que haverá visitantes interessados no pai do socialismo soviético?
- Eu disse que sobre isso ele poderia ter a mais absoluta das certezas. Há muitos comunistas no Brasil. Alguns vão chorar de emoção ao ver o senhor. Ou seria a senhora? Desculpe, estou falando com o cadáver ou com a múmia?
- Tanto faz, disse a criatura, já não me incomoda o gênero. Acho que vou me instalar aqui mesmo. Desde que morri e fui mumificado por ordem de Stalin a vida tem sido monótona. Não sei se o camarada sabe, mas fui privado do cérebro, tirado para estudos. Queriam saber onde se escondia a minha genialidade. Faz falta quando tento resolver quebra-cabeças.
De qualquer maneira, está decidido. Vou montar o mausoléu nesta praia. E se porventura não der certo tenho um plano B.
- Qual seria, perguntei.
- Um quiosque. Se faltar público, monto um quiosque. Mas isso está fora de cogitação. Logo você verá filas se organizando para me ver. Vou fazer a América. Eu ia dizer alguma coisa quando a múmia desapareceu. Depois do encontro fiquei pensando na bilheteria do mausoléu. Vai rolar uma grana solta. Comunistas ortodoxos deverão pagar meia, trotskistas de carteirinha também, já o pessoal do MST terá direito a uma visita gratuita por mês. Os companheiros do PT pagarão normalmente, como também qualquer tucano que se interesse por múmias. Há alguns.
O problema vai ser nomear um tesoureiro para cuidar do faturamento. No Brasil o que é público é de quem pegar primeiro, costume antigo. Dificilmente alguém iria respeitar dinheiro de múmia. Durante a conversa eu havia sugerido o nome de Delúbio Soares, que tem experiência e está desempregado. A múmia disse que jamais aceitaria, nem que estivesse morta! Da próxima vez vou sugerir Okamotto.

Sidney Borges

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