Battisti

Um fato em foco

Sidney Borges
Para este escriba é certo que fazer jornalismo resume-se em apresentar os fatos. A verdade factual não é apenas uma premissa, tenho convicção que ela existe acima de preconceitos e ideologias. Opinar é importante, mas exige conhecimento de causa. Quando há controvérsias, como é o caso do asilo concedido ao dublê de escritor e ex-terrorista Cesare Battisti, é da maior importância mostrar os dois lados antes que o povo julgue. Abaixo duas visões que acrescentam alguns dados ao enigma. Tarso Genro agiu à luz do Direito? Tarso Genro agiu ideologicamente? Você decide.


Um bode expiatório conveniente à Itália

Maria Inês Nassif
www.valoronline.com.br/ValorImpresso/MateriaImpres...
A história que resultou na condenação de Cesare Battisti à prisão perpétua pela justiça italiana em 1993 poderia ser o roteiro de um de seus romances policiais, se não tivesse transformado o próprio escritor num cavaleiro errante. Pelos fatos que levaram à sua condenação, o ministro da Justiça, Tarso Genro, certamente não cometeu nenhuma heresia ao conceder a Battisti o status de refugiado político. "Um dos fundamentos muito próximos do diferimento do refúgio político é de que se o condenado teve direito à defesa. O Estado italiano alega que sim. Na avaliação que nós fizemos do processo, ele não teve direito à ampla defesa", afirmou o ministro, justificando a sua decisão.

A autobiografia de Battisti, "Minha fuga sem fim", traz fatos em favor da convicção do ministro. Se o escritor for extraditado para a Itália, cumprirá prisão perpétua sem ter passado por um tribunal e pagará por quatro assassinatos que o bom senso não permite que sejam relacionados a ele. Nunca esteve num tribunal para defender-se dessas acusações - e, de volta à Itália, não será ouvido por nenhum juiz. A condenação foi feita com base na acusação de um ex-militante da mesma organização, um "arrependido" que negociou anos a menos na sua pena (muitos anos, aliás) em troca de incriminar outras pessoas. Não foi apresentada nenhuma prova, testemunha ou um único indício. Dois dos homicídios foram cometidos no mesmo 16 de fevereiro de 1979, a 500 km de distância um do outro. O outro foi o de um comandante de uma prisão, em junho de 1978. E, por fim, teria assassinado o policial Andrea Campagna, acusado de torturas. Nesse último caso, a testemunha ocular descreveu o agressor como um barbudo louro, medindo 1,90 m. Battisti é moreno e tem 1,70 m. Foram encontradas armas no apartamento onde o escritor vivia com outros italianos clandestinos, mas a própria polícia constatou que elas nunca haviam sido disparadas.

Segundo o livro de Battisti, a organização da qual fazia parte, o grupo dos PAC (Proletários Armados para o Comunismo), organizara-se no período de crítica ao stalinismo, era totalmente descentralizado e nada impedia que um punhado deles, em determinada região do país, fizesse ações e se assumisse como parte do grupo. Seria difícil, assim, que todos os que militavam nos grupos dispersos pela Itália se conhecessem.

Após maio de 1978, quando as Brigadas Vermelhas executaram Aldo Moro - relata - as organizações de esquerda (em geral) se apavoraram e mergulharam na discussão sobre a continuidade da luta armada. Os PAC refluíram para um princípio que já era um pé fora da luta armada (até então, diz Battisti, pelo menos no grupo que militava, as ações se resumiram a "apropriações" para manter os clandestinos; somente os quatro assassinatos que lhe foram imputados pela Justiça italiana foram atribuídos aos PAC). Mas, excessivamente descentralizado, um dos núcleos do grupo reivindicou o assassinato do comandante da prisão, no verão de 1978. Foi quando Battisti rompeu com o grupo. "Juntamente com parte dos militantes de primeira hora, naquele momento decidi virar a página e renunciar definitivamente à luta armada", diz, no livro. Isso quer dizer que, quando ocorreram os outros três assassinatos dos quais é acusado, ele sequer era militante do PAC.

O escritor foi preso na violenta repressão que sucedeu a morte do democrata-cristão Aldo Moro. No processo criminal, ninguém atribuiu a ele qualquer relação com a morte do comandante da prisão. Foi testemunha, todavia, de métodos pouco convencionais de interrogatório. Foi dessa época também a lei de delação premiada, que fez proliferar "arrependidos". Battisti conseguiu fugir com a ajuda daquele que, "arrependido" no futuro, jogaria sobre ele todas as culpas. Era Pietro Mutti.

Fora da prisão, Battisti recusou a proposta de aliança feita por Mutti, que comandava um tanto de jovens num grupo chamado Colp, que não se sabe o que significa. Mutti foi detido em 1982 - Battisti já estava longe, em Paris, depois de uma passagem pelo México. Nos "tribunais de exceção" italianos criados à época por leis especiais, Mutti, ameaçado de prisão perpétua, foi farto em acusar ex-companheiros de crimes. Especialmente Battisti. O escritor beneficiado pelo ministro Tarso Genro também foi acusado por outros integrantes do PAC, de tal forma que, de todos os envolvidos com o grupo, apenas ele foi condenado à prisão perpétua. Foram tantas as contradições resultantes desse jogo de se safar jogando a culpa no outro que o próprio tribunal de Milão, em decreto de 31 de março de 1993, reconheceu: "Esse arrependido (Mutti) é afeito a 'jogos de prestidigitação' entre seus diferentes cúmplices, como quando introduz Battisti no assalto de Viale Fulvio Testi a fim de salvar Falcone, ou Battisti e Sebastiano Masala no lugar de Bitti e Marco Masala no assalto ao arsenal Tuttosport, ou ainda Lavazza ou Bergamin no lugar de Marco Masala nos dois assaltos veroneses" - segundo trecho citado pela escritora Fred Vargas no posfácio do livro.

Diante de tantas contradições e de tantos fatos mal explicados, inclusive um asilo revogado na França (depois de um atuante trabalho de lobby italiano), fica a dúvida de por que interessa tanto ao governo italiano coroar Cesare Battisti como o bode expiatório de um período negro na Itália, onde não apenas a luta armada enevoou o país, mas as instituições se ajustaram a uma guerra contra o terror usando métodos pouco afeitos à ordem democrática. Talvez reconhecer erros no processo que levou à condenação de Battisti tenha o poder de expor a falta de legitimidade de ações policiais e judiciais desse período difícil da Itália.


A Itália e o caso Battisti

A Itália ganhou a guerra dos anos 70: a República se manteve sem deixar de ser Estado de Direito

Contardo Calligaris
www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2201200920.ht...
QUANDO SAÍ de férias, o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados) tinha negado o status de refugiado político a Cesare Battisti, o foragido da Justiça italiana preso no Brasil em 2007, num quiosque de Copacabana (esse detalhe deve ter revoltado mais de um, na Itália: "Matou meu pai, meu marido, meu amigo, e agora toma água de coco na praia?").
Durante os ditos anos de chumbo italianos, Battisti, 54, foi membro dos PAC (Proletários Armados para o Comunismo), um grupinho ideologicamente pouco expressivo, mas muito violento. Em 1981, sem ser acusado de nenhum homicídio específico, ele foi condenado a 12 anos de prisão; fugiu para o México e, logo, para a França. Quando a França mudou sua política de asilo aos terroristas foragidos, Battisti veio ao Brasil, com documentos falsos. Entretanto, Pietro Mutti, chefe dos PAC, foi preso na Itália e, para evitar a prisão perpétua, escolheu a "delação premiada". Na delação premiada, os acusados, para se salvarem, denunciam outros culpados, e é frequente que eles "ferrem" logo os foragidos, que estariam "a salvo" (esse era o caso de Battisti). Agora, sem a delação premiada, a polícia italiana não teria desmanchado as organizações terroristas dos anos 70 nem marcado pontos no combate contra as máfias. Enfim, o "arrependimento" de Mutti levou a novos processos, nos quais Battisti foi condenado por seu envolvimento em quatro homicídios -dois eram execuções de comerciantes que tinham "ousado" resistir aos assaltos pelos quais os PAC "arrecadavam" fundos. Bem no dia de minha volta ao Brasil (15 de janeiro), eis que Battisti estava nas primeiras páginas da imprensa italiana, num coro de indignação: Tarso Genro, ministro da Justiça, acabava de conceder asilo a Battisti, revertendo a decisão do Conare. Deixo de lado o debate jurídico. O que mais fere os italianos é a ideia de que, segundo o Brasil, Battisti, voltando para a Itália, correria perigo de vida; como se o Estado italiano fosse um bandido, pronto a eliminar restos incômodos de seu passado. Há, nessa ideia brasileira, uma projeção: nos anos 70, a Itália teria sido uma ditadura, como o Brasil. Essa visão da Itália, além de errada, é cúmplice do próprio ideário dos anos de chumbo. Pois, nos anos 70, foi graças à visão de um Estado bandido que os terroristas italianos, de esquerda e de direita, justificaram seu ódio pelo que lhes parecia ser a "mediocridade" democrática.
Neofascistas ou "revolucionários", eram adolescentes enlouquecidos que queriam vidas e mortes "extraordinárias". Atiravam em sindicalistas e comerciantes ou colocavam bombas nos trens para acabar com a "normalidade" cotidiana que receavam para seu próprio futuro; e juravam que era para lutar contra a opressão do Estado. Hoje, é possível dizer que a Itália ganhou a guerra dos anos de chumbo: a jovem República se manteve sem deixar de ser um Estado de Direito. Quem pensa assim? Acaba de sair um livro de Adriano Sofri, que foi (ele sim) uma figura crucial e pensante daqueles anos, líder de Lotta Continua, acusado como mandante do homicídio do comissário Luigi Calabresi e condenado a 22 anos de prisão. Em "La Notte che Pinelli" (ed. Sellerio), Sofri reconstitui a história da investigação depois do atentado de Piazza Fontana, em Milão, em dezembro de 1969 (bomba que foi o primeiro ato dos anos de chumbo). O comissário Calabresi seguiu a pista anárquica -errando, pois a bomba (entendeu-se mais tarde) era de direita. O anarquista Giuseppe Pinelli, questionado, "jogou-se" da janela do quarto onde estava sendo interrogado. Lembro-me bem: Pinelli, para todos nós, "tinha sido suicidado". Junto com o corpo de Pinelli, naquela noite, ruiu a confiança no Estado. Ou seja, a bomba surtiu o efeito desejado: durante décadas, a democracia pareceu ser apenas o disfarce de uma dominação brutal e escusa, que legitimaria o combate armado. Calabresi, um policial íntegro, não foi responsável pela morte de Pinelli, mas foi assassinado, em 1972, depois de uma campanha de imprensa que o culpava. Com coragem admirável, Sofri escreve o que talvez venha a ser o melhor epitáfio dos anos de chumbo: "Não me sinto corresponsável por nenhum ato terrorista dos anos 70. Mas do homicídio de Calabresi, sim, por ter dito ou escrito ou por ter deixado que se dissesse e se escrevesse "Calabresi, você será suicidado'".

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