Coluna da Segunda-feira

O velho e o mar

Renato Nunes
Pouca gente sabe que a Praia do Tenório, a Vermelhinha, a Praia do Cedro, todas ficavam numa ilha. O mar separava o morro da Ponta Grossa das terras situadas no canto do Itaguá e Praia Grande. Era um mar único. Há trinta mil anos suas águas passavam por ali livremente, ladeadas de um lado pela costeira dessa ilha, e de outro pelo o grande mangue existente na desembocadura do rio Acaraú. Nas terras da Praia Grande, à medida que se afastavam das águas com influência marítima as raízes iam pouco a pouco ficando escondidas na terra e passavam a sustentar outro tipo de vegetação. Deixando para trás mariscos, ostras e caranguejos pré-históricos serviam de apoio para gigantescas árvores e densa folhagem. Era a Mata Atlântica, grande faixa litorânea de floresta que se estendia do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, subia serras e montanhas e ocupava quase um milhão e meio de quilômetros quadrados. Hoje está reduzida a 52 mil quilômetros quadrados.

Entre bromélias, fungos, samambaias, palmeiras e orquídeas circulava primitiva fauna naquele ambiente verde e úmido. Os indícios revelam que há cerca de 3.500 anos o homem já estava presente em nossa região. Ilha do Mar Virado. Estão ainda lá para quem quiser ver. O esqueleto fóssil de um ser humano, semi-enterrado, com pedaços de seus objetos de uso. Foram localizados mais de oitenta esqueletos, estudados, datados e protegidos pela Universidade de São Paulo. Quem eram? Como atravessavam o mar para pescar? Como pescavam? As fotos, estudos e conjecturas foram parar nas prateleiras acadêmicas.

Essa preciosidade está ali, a meia hora de escuna turística saída do píer do Saco da Ribeira. Ubatuba não tem só praias/sol/surf. Nossa natureza é um livro aberto que ainda não foi editado. Puro desleixo. Suas páginas mostram indícios da formação geológica, da presença dos primeiros homens da face da terra, dos índios, da colonização, tudo isso meio escondido na mata, nas grutas, nos riachos.
Ninguém pode mudar uma realidade acontecida há trinta mil anos, mas são coisas que todos gostam de saber, e melhor ainda, gostam de ver, de estudar. Para isso atravessam o mar, percorrem longas estradas, compram passagens de aviões, enchem hotéis e restaurantes. Injetam preciosos recursos nas economias das cidades que têm tais tesouros escondidos na natureza. Para atender essa curiosidade e elevar a renda do município não é preciso devastar nada. Somente pesquisar, catalogar, fixar normas racionais para uso e proporcionar condições. E estabelecer um sistema responsável de fiscalização.

O futuro é especulação, o passado é registro. Um precisa de conhecimento e intuição para ser previsto, o outro precisa de conhecimento e curiosidade para ser compreendido. Intuição e curiosidade são características individuais, são próprias de cada um e não são ensinadas, no máximo são transmitidas pela genética. O conhecimento, entretanto, se adquire através de ensinamentos sistemáticos realizados sob todas as formas.

O pequeno grupo de técnicos do qual eu fazia parte, que elaborou o projeto da lei de uso do solo, o PL-106/03, sabia muito bem da importância desses fatos para o desenvolvimento econômico de Ubatuba, e definiu naquela proposta de lei, entre regras de zoneamento e princípios de ocupação do solo, os procedimentos para catalogar e usar o conjunto de nossas reservas naturais. Depois de um ano de discussões e aceitação junto à comunidade o projeto de lei foi engavetado na Câmara Municipal, e com ele um dos inúmeros aspectos importantes de uma inexistente política econômica para o Turismo.

Considero oportuno transcrever o artigo de abertura do tema na proposta feita naquela ocasião:
Capítulo III - Dos Vetores Econômicos Físico-Territoriais do Município;
Artigo 9º - São considerados bens patrimoniais ativos do município, todos os locais e sítios geográficos, ocorrências geológicas, quedas e cursos d’água, picos, orlas das praias, mirantes naturais, elevações e paisagens constituídas por maciços verdes de Mata Atlântica e demais situações naturais que possam provocar interesses educacionais, recreativos ou científicos.
&único - São bens patrimoniais ativos os locais que possibilitem, através de critérios específicos formulados pelo município em conformidade com os artigos 1º e 5º do Decreto Estadual nº10251/77 que cria o Parque Estadual da Serra do Mar e o Decreto Federal nº84017/79 que aprova o Regulamento dos Parques Nacionais Brasileiros, a visitação, a recreação e a pesquisa.


Ficou mais uma vez claro que gaveta burocrática não permite a expansão do conhecimento e muito menos da economia, mas eu acho que não prestaram muita atenção nisso.

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