Crônica

Brechó Brasil

Marcelo Mirisola*
Mistério do Samba é o documentário que Marisa Monte, Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda fizeram sobre a Velha Guarda da Portela. De antemão quero me colocar em suspeição e dizer que nunca fui com as fuças da Marisa Monte, sobretudo depois que ela se juntou com Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown. Sou ruim da cabeça, e ainda não aprendi a namorar.

Vários críticos costumam elogiar a discrição de Marisa Monte diante da máquina de moer alminhas que é o showbizz. Como se essa postura (ou distanciamento elegante) de algum modo se incorporasse ao seu repertório. Pode ser. Mas não me convence. Para mim, Marisa Monte é uma bichogrilo superdotada e, acima de tudo, é uma executiva que sabe muito bem administrar o próprio negócio. Se o negócio de Marisa não fosse administrar delicadezas, eu diria que ela poderia ser da estirpe de uma Paula Lavigne, no sentido de que essas mulheres sabem trazer as coisas para si mesmas, ou seja, são as melhores advogadas da própria causa; transformam bijuteria em ouro, feiúra em beleza e charme, compulsão em preguiça e dengo. Marisa Monte teria todos os motivos desse mundo para sentir-se uma pessoa muito legal (inclusive de perfil). Será?

Ela consegue esconder o nariz adunco debaixo de um repertório impecável, e muito embora seja amiga do Paulinho da Viola e quiçá abençoada por todos os orixás da Bahia, e ainda de lambuja seja a melhor cantora do Brasil, não me convence. Marisa Monte tem culpa no cartório, o problema é que ela não desconfia disso, nem ela nem ninguém.

Aqui na minha cachola não consigo vislumbrar Marisa Monte andando descalça, não feito uma Clara Nunes, por exemplo. Não é que falte leveza nela, eu é que não fico muito à vontade com a situação. Os calcanhares sujos da Marisa Monte não me convencem. Nem o eventual sovaco mal depilado. Diferentemente de um Vinicius de Moraes que, antes de ser negrão, foi integralista, Marisa Monte – a meu ver – apenas aderiu a uma lenda alheia. Adquiriu um bronzeado artificial numa praia onde o citado Vinicius teve de se arrebentar inteiro para passar uma tarde fugidia. Se Carolina Jabor e Lula Buarque tivessem feito um filme sobre a criadagem de suas belas casas arborizadas em Santa Teresa, o resultado não teria sido menos comovente.

Sim, porque Mistério do Samba chega a ser uma covardia de tão comovente que é. Mas não me pega. Ela, Marisa, podia ao menos ser uma perua desmiolada para ser mais convincente. Mas no fundo é uma CDF. Marisa Monte carrega uma mistura de gentileza real com gratidão superior, fruto de muita pesquisa e disciplina. O resultado é que oferece esmolas bacanas. Aliás, as mesmas esmolas oferecidas por José Miguel Wisnik, Gudin, Nestrovski e cia ltda, eles são os Acadêmicos da Estação Primeira da Hebraica. É como se esses bambas não quisessem ser “limpinhos”.

Todavia, a Casa do Saber e o doutorado em sociologia (ou letras) que fizeram na USP os denunciam com veemência: corpo docente, branquelos! Em suma, eles aprenderam a namorar com o Carlinhos Brown, mas nunca descuidaram da própria segurança. Os acadêmicos da Hebraica fazem música de camisinha.

Marisa Monte tem algo de jaqueira catalogada, de pé sujo ressuscitado.

---- Quer samba de raiz? Então procura no brechó da Marisa, fica na quadra da Portela.

A filial do brechó fica na rua Oscar Freire, super intimista – tipo blasé frango com quiabo. Enfim, esse descolamento de Iemanjá chique que transforma até o mais insuspeito carioca em paulistano deslumbrado, é o que me incomoda. E muito.

Tenho birra, fazer o quê? Mas não podia deixar de ver Mistério do Samba. Ou melhor, fui assistir a platéia. Nem vou comentar o filme – que só podia mesmo ser comovente. O problema – insisto - é a platéia. Ou os desdobramentos de Marisa Monte (eis a culpa no cartório e eis a questão fundamental).

Uma platéia que reluzia no Unibanco Arteplex: garotos "sarados" de cabeleira loura encaracolada, e as respectivas namoradas low profile; assim: propositadamente meio largadas como se pudessem disfarçar o carro blindado estacionado irregularmente sobre a calçada da Voluntários da Pátria. Curioso. A mesma platéia que encontrei ano passado, quando fui assistir o filme Cartola ,de Lírio Ferreira, no Cine Unibanco da rua Augusta, em São Paulo. A explicação talvez consista no fato de que a intenção de um filme é igual à intenção do outro: “bater punheta de pau mole”, como bem definiu o compositor Lobão. Ele vociferava contra João Gilberto e as efemérides relativas aos cinqüenta anos de Bossa Nova.

Lobão estava certo, concordo com ele. Para mim, João Gilberto, Roberto Carlos e Caetano Veloso são o mesmo pau mole. O que não falta é “gente bacana” para enviagrar esses punhetaços.

Quem confirma a tese do Lobão é o Setúbal. Curioso,né? Antes de ir pros quintos dos infernos, o banqueiro comprou no mesmo pacote a Bossa Nova, o Tropicalismo e a Jovem Guarda. Tudo a mesma coisa. O filme da Marisa Monte, creio, existe nessa mesma lógica e diapasão, com um agravante: no caso de Mistério do Samba, essa punheta é batida com pau mole, e alheio.

Tanto num filme como no outro, os meninos dourados da platéia sabiam na ponta da língua os sambas dos negões da antiga. Íntimos dos criolos da Portela, “cumpadis” de Timbira, Guaraci Sete Cordas, Argemiro Patrocínio, Tia Surica; a mesma platéia de Lírio Ferreira, íntima de Cartola, Donga, Pixinguinha Nelson Sargento, Carlos Cachaça... vale dizer: íntimos de todas as cáries e carrapatos, íntimos das sífilis, vexames e desgraças dos infelizes, semi-analfabetos e fudidos sambistas da antiga. Alguma coisa deve estar errada. Quem foi que inventou a feijoada light?

Um dado de hipocrisia e desencontro. Na pré-estréia de Mistério do Samba, num restaurante ao lado do cine Odeon, um grupo de veteranos da Portela comemorava a iniciativa de Marisa Monte. Um deles declarou algo mais ou menos assim: “Não foi fácil, éramos discriminados e perseguidos”. Só que os velhinhos não se deram conta de que os mesmos senhores que os perseguiam ontem, hoje os afagam. Nada mudou, a miséria é a mesma. O nome disso é uso, má-fé. Alguém precisa avisar a Marisa Monte que, ao contrário do que ela pensa, a vida não vai melhorar com esse filme, que nem ela, nem Carolina Jabor, nem Lula Buarque são pessoas tão legais quanto fazem crer.

Zeca Pagodinho é o maior sintoma desse uso. E, não por acaso, protagonista dos melhores momentos do filme. Há quatro anos escrevi o seguinte: Pagodinho é uma espécie de Aleph de buteco chique. Vejam só. O tempo passa, não aprendo a namorar, mas o meu argumento continua funcionando, graças a Deus.

Eu falava que Zeca Pagodinho é o ponto onde todas as sofisticações perdidas e as culpas do Leblon, desde os anos dourados até a propaganda da Brahma, encontram-se com a indigência de Xerém e convergem para... lugar nenhum. Não tenho dúvida: Zeca Pagodinho é o homem a quem Chico Buar­que se fez mulher em suas músicas. Ele é aquele que pacifica o peso das diferenças e faz sambinhas honestos.

Alguém aí, por acaso e a propósito do descompasso supracitado, já ouviu o CD Ganha-se pouco, mas é divertido, de Cristina Buarque de Hollanda, irmã do Chico? Ela destrói o campista Wilson Batista. A inhaca é sinto­mática. Trata-se de uma soma de tudo o que apodreceu­ neste país. Uma combinação impossível do vo­lun­tarismo de uma aristocrata intelectual (cheia de culpa, tesão e sofisticação, diga-se de passagem) com o oposto periférico esbulhado, talentoso, original e varrido do mapa. Tudo num só CD. Ou seja, música brasileira de primeira qualidade levada aos limites da inverossimilhança e que só podia acabar — como maldição ou uma luta de classes escondida debaixo do tapete — refletindo-se no esgar­çamento da voz da intérprete Cristina e do sobrenome Buarque de Hollanda.

O caso é grave. A irmã do Chico tenta, mia e evidentemente destoa, enquanto, tanto o repertório impecável produzido por Hermínio Bello de Carvalho quanto os arranjos e o sete cordas de Maurício Car­rilho, digamos, agüentam aquilo tudo. Um desarranjo. A invenção deste lugar-Brasil que há muito deixou de existir, ou o convívio do “autêntico samba de raiz” com a aristocracia estéril de Cristina chega a ser constrangedor, para não dizer que é uma mentira perdida no tempo e no espaço, todavia nada espectral, e que, hoje, reina absoluta, seja em políticas de governo, na adulteração da própria música e, agora, no documentário “poético” de Marisa Monte.

Suspeito que foi exatamente com essa argamassa que os renegados avós espirituais de Marisa Monte construíram os sonhos e os prédios da Zona Sul carioca. Os mesmos sonhos que efetivamente estão sendo engolidos pelas “comunidades” e jazem cravados de bala e realidade. Acabou, Marisa. O barquinho, o azul e o mar, as bossas todas — o samba, no atacado e na raiz e no varejo — naufragaram na própria poesia. Zeca Pagodinho é apenas um cachaceiro talentoso que não está nem aí para suas “patricices líricas”, Marisa.

De resto, é lamentável acompanhar a Velha Guarda do samba ser esbulhada por essa garotada sem viço – filhotes da Marisa Monte. Exagero meu? Para quem quiser constatar in loco, basta ir aos cinemas e prestar atenção na platéia, ou a qualquer barzinho da Vila Madalena, em São Paulo, ou a qualquer imitação de bar carioca na Lapa, no Rio mesmo. São íntimos dos bambas, exímios jogadores de sinuca, proxenetas vocacionados. Como diria meu amigo Nilo: “A garotada visivelmente inveja a qualidade morna da testosterona, a suposta ‘malandragem’ que falta na ortopedia acadêmica dos seus corpinhos de lombriga. Tudo fora do lugar: como na jugular de qualquer grande escritor ou poeta se vê grudado, invariavelmente, um cacho insaciável de psicanalistas, estes vermezinhos dourados tentam sugar dos sambistas da antiga a força vital que lhes falta: ignorando, obviamente, que ‘malandragem’ é apenas um dos muitos nomes da 'sobrevivência' ou da ' falta de opção'”.

Vale repetir: sobrevivência e falta de opção. Não há, portanto, qualquer Mistério do Samba. O que existe – repito – é uso e má-fé.

Assino embaixo mil vezes. E tenho algo a acrescentar. Aliás, algo a repetir: num mundo bundão, onde escritores fazem projetos e discutem planilhas, e jornalistas coxinhas cagam regras e os julgam como iguais (porque são mesmo), onde todos morrem de medo do famigerado "departamento jurídico", e a revista Rolling Stone paga pau pra Ivete Sangalo, nesse mundo bundão, onde campeia o politicamente correto, e os heróis que morreram de overdose são reduzidos a estereótipos de filminhos de entretenimento, onde as oposições e as periferias são cooptadas pela teia, e são tão world e bundonas quanto, bem, nem nesse mundo bundão, onde os poetinhas da Vila Madalena e os universitários marxistas da Lapa (dá na mesma) sugam a virilidade dos sambistas da antiga, nada mais previsível do que o sucesso estrondoso do filme de Marisa Monte. Enquanto isso, o Brasil apodrece em volta, sem viço nem originalidade; no nepotismo derramado e sincero dos papais da grande imprensa: de chapéu panamá, paletó de linho, gravata vermelha e sapato bicolor. Eis o legado de Marisa Monte e de sua turminha; o malandro berimbau (desculpem a grosseria): aquele que dá o cu para não gastar o pau. Em suma, existe um descompasso nesse samba. Uma havaiana não pode custar 120 reais.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.

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