Brasil

Os mais intocáveis

Se "Chávez tem que cuidar da Venezuela", o Senado tem que cuidar do que se passa nele, o que não faz

Janio de Freitas
O ENTREVERO criado pelo Senado brasileiro com Hugo Chávez, na hora mesma em que o presidente da Casa precisa que um desvio afaste de si as atenções curiosas ou indignadas, é uma daquelas coincidências que parecem pedir para não ser acreditadas.
A força da resposta de Chávez era imprevisível, mas que viria resposta com a sua marca, aliás justificada pela intromissão do Senado na extinção de uma TV venezuelana, isso até dispensava previsão. O que é pouco, sim, para afirmar uma coincidência construída. Se bem que a colaboração do senador José Sarney na Folha, uma fuga ao seu estilo ameno para investir contra Chávez e a "democracia bolivariana", por pouco não indicou a autoria da moção do Senado. Ainda mais para os que atentaram em um fato desprezado pelo noticiário proveniente de Brasília: uma ida solitária do senador Sarney à casa de Renan Calheiros, em horário incomum da manhã, não muito antes de surgirem as primeiras referências à petição do Senado a Chávez, em defesa da RCTV.
Nem com a dupla ajuda do senador Sarney o acaso chega a transformar-se em elaboração. Ainda mais aqui, onde do jornalismo sempre surge um dedo espichado para berrar "teoria da conspiração!", como se política não fosse uma sucessão de conspirações opostas. Apesar do dedo ignorante e do berro suspeito, o fato é que sobre a tal petição nada foi explicado ou informado pelo noticiário de Brasília, a respeito da origem, forma, nem mesmo da existência e, sobretudo, das razões da ingerência, em assunto interno de outro país, por um Senado que nunca se deu a tal iniciativa em ocorrências tão ou mais graves que a de Chávez.
Como resultado, para Renan Calheiros não faz diferença se houve acaso ou foi produção. Idem para Lula, que viu a obviedade de sua escapatória transformada na mídia brasileira em gesto de altivez soberana. Lula, na realidade, não "condenou", não "protestou", não "criticou", não "repudiou" e não "mandou Chávez cuidar da Venezuela". Nada disse aquém do que Chávez gostaria de ouvir: "Eu penso que Chávez tem que cuidar da Venezuela, eu tenho que cuidar do Brasil, o Bush tem que cuidar dos Estados Unidos, e assim por diante". Se essa obviedade condenasse um, condenaria os três. E ainda passa muito bem por uma afirmação de que Chávez fez "o que tem que fazer".
Sem precisar do óbvio, do acaso e de elaborações é a postura dos meios de comunicação brasileiros em relação a tudo que diga respeito à sua área: prevalece o corporativismo, sem equivalente exceto o dos jornalistas. A dúvida é se o corporativismo dos militares ainda chega a tanto ou vem logo abaixo.
Canais de rádio e TV são propriedades das respectivas nações. Sua exploração por particulares é feita pelo regime de concessão. Não sendo resultado de compra ou doação recebida, a concessão está sujeita, mundo afora, às renovações. É o que a Constituição brasileira determina nos cinco artigos do seu quinto capítulo (rádios a cada dez anos, tevês a cada 15). A necessidade de renovação contém, implicitamente, a possibilidade da não renovação. Mas os princípios constitucionais brasileiros não só a mencionam com explicitude, como vão mais longe: estabelecem a possibilidade de cancelamento, de cassação do canal sem depender de negar renovação.
O ato administrativo praticado na Venezuela está de acordo, portanto, com o fixado pela própria Constituição brasileira. As razões de Hugo Chávez contra uma TV documentadamente comprometida com um golpe de estado compõem outra ordem de discussão, política e ideológica, mas não a de agressão ou violação da democracia. O funcionamento de tevês não atesta, por si, a existência de democracia, assim como a liberdade de expressão não lhes dá o direito de fazerem do canal, concedido em nome do público, o uso que quiserem. O uso político/ideológico de um canal de propriedade da nação, embora de exploração particular, não será legítimo quando se volte contra as aspirações de uma parte significativa dos proprietários públicos do canal.
Rádios e tevês, nesse sentido, distinguem-se de jornais, revistas e editoras de livros, que não se valem do uso de um bem da nação, resultando de investimento privado. Mesmo assim -este é um ponto que provoca discussões sem fim- a liberdade de expressão na imprensa está sujeita a limitações, é verdade que nem sempre as mais inteligentes e necessárias, mas não absurdas só por serem limitações, como afirmam os corporativismos dos meios de comunicação e dos jornalistas. Até parece, diante desse corporativismo, que não há censura alguma no Brasil.
Se "Chávez tem que cuidar da Venezuela", o Senado tem que cuidar do que se passa nele, o que, outra obviedade, não faz. E tudo indica que não vai fazer.
Artigo transcrito do jornal Folha de S.Paulo, dia 03 de junho de 2007

(Do Blog do Noblat)

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