Coluna do Mirisola

Os pés descalços dos mortos

"Tá na moda. A coisa mais fácil do mundo, hoje em dia, é um simples anônimo ressentido juntar uma coisa com as outras e se transformar num criminoso"

Marcelo Mirisola*
Guerra Fortes é meu amigo e repórter especial da revista Artigo 5º*. Nos encontramos semana retrasada numa padaria da rua Martins Fontes, em São Paulo.

MM. E aí, Guerra? Tudo bem?

GF. Tudo gelado, Mirisola. Cada vez mais difícil encarar o ar seco dessa cidade. Fuma?

MM. Você sabe que eu não fumo, Guerra. E sempre me oferece cigarros. Por quê?

GF. Porque te conheço.

MM. Virou paranóia nazista, confesso que pensei na hipótese.

GF. O bom e velho Mirisola. Subversivo.

MM. Não adianta nada. Nem ser subversivo, nem ser cínico como você. Olha lá o caixa pedindo pra apagar o cigarro.

GF. Filhos da puta. A lei pegou no Rio?

MM. Até no Rio, acredita? Mas o problema é que eu não tenho jeito pra coisa. Me sinto meio ridículo com um cigarro no meio dos dedos, assoprando fumacinha. Não combina comigo. Infelizmente não. E o seu enfisema, vai bem?

GF. Dr. Marlboro receitou quatro maços ao dia.

MM. Fico feliz em saber, Guerra. O Ibirapuera é um ótimo lugar pra você praticar esse esporte. Agora, o que me deixa mais feliz é o fato de que você conseguiu se livrar daqueles mata-ratos paraguaios. Subiu na vida, né?

GF. Os mata-ratos tinham um certo élan...

MM. Élan?

GF. O charme indiscreto, lembra?

MM. Verdade, tinha esquecido. O charme que circula nas ruas do Bixiga...

GF. Claro que esqueceu, Mirisola. E hoje chamamos aquela confluência de Baixo Bixiga.

MM. Baixo Bixiga? Só faltava essa. Falando em eufemismos e frescuras, outro dia, Guerra, me peguei olhando o reflexo do pôr-do-sol nos trilhos do bonde de Santa Teresa.

GF. Por que você abandonou a gente?

MM. Tem a Brisa.

GF. Ah, não. Você enlouqueceu de vez. Não acredito! Meu bom e velho amigo Mirisola impressionado com o reflexo do sol nos trilhos de Santa Teresa... impressionado com a Brisa?!

MM. Ora, Guerra. Tenho que me preservar das “confluências do Baixo Bixiga”! Mas não se trata da brisa do mar... Tô falando da Brisa dos Santos, uma negra maravilhosa que conheci lá no Méier.

GF. No Méier?

MM. Sim, bem no dia que fui expulso do terreiro pelo Exu Tiriri.

GF. Exu Tiriri?

MM. Chamei o Tiriri de Tiririca. Foi uma coisa involuntária.

GF. Involuntária? Da sua parte e nessas circunstancias?

MM. Juro!

GF. Duvido. Você vai jurar por quem?

MM. Pela Brisa. Tá bom pra você?

GF. Se for pela Brisa, eu aceito.

MM. Então. Nesse dia conheci a Brisa. E até escrevi umas coisas em homenagem aos interlúdios desfrutados dentro da fornalha... dentro da fornalha da Brisa, entende?

GF. Prossiga, meu caro.

MM. Eu dizia mais ou menos que no intervalo desfrutado dentro do rabo de uma negra chamada Brisa você não precisava perdoar seus inimigos. Mas só naqueles breves momentos, entende? Tava falando da fração mágica...

GF. Mirisola...

MM. Quié?

GF. Não volta.

MM. Claro que não. Mas me diz uma coisa, Guerra. Verdade que você está se especializando em crimes virtuais, bullying, pirataria intelectual, etecetera?

GF. Principalmente no etecetera.

MM. Diz aí.

GF. Uma fartura, meu caro.

MM. Fartura é?

GF. Toneladas de provas, patinhas sujas. O crime é novo, mas os vícios são antigos.

MM. A boa e velha lama.

GF. Sim, lama bíblica. Inveja, ódio, vingança e todos os subprodutos.

MM. O velho testamento é foda, né?

GF. Um clássico. A fonte de todas as perversões. Assassinatos. Violência. Crime e castigo. Sadismo e putaria correm soltos, desenfreados.

MM. E dona Leonor, está bem?

GF. Ela sente sua falta, reclama que você nos abandonou.

MM. Se eu pudesse viria mais a São Paulo.

GF. De repente sopra uma brisa por aqui...

MM. Aí é outra conversa. Né?

GF. Canalha.

MM. Que é isso, Guerra...

GF. Lembra quando você se apaixonou por aquela biscatinha cearense que morava no Rio? A ponte aérea virou seu Butantã-USP.

MM. Não me lembra disso! Agora estou imunizado.

GF. Você? Imunizado? Conta outra piada. Só vou lhe dizer uma coisa: segunda-feira vai ter bife de panela com purê de batata na pensão da dona Leonor. Ela disse que não irá perdoá-lo se você der o cano. Capisce?

MM. Tá marcado. Se dona Leonor convocou, está convocado.

GF. Ali é na base da realidade, você sabe que ninguém faz um molho ferrugem como ela.

MM. Sim, eu sei. Dona Leonor é bíblica.

GF. Exatamente... ela é perfeita e não perdoa vacilos.

MM. Você acha que Deus poderia usar o tuíter para se comunicar hoje em dia?

GF. Com certeza.

MM. Ia dar muito boi na linha.

GF. Claro que sim, boi, serpente, cordeiros, lagartos e mosquitos - do mesmo jeito que sempre aconteceu. Desde a gênese.

MM. Em verdade vos digo: a única coisa em permanente estado de imanência e perfeição....

GF. É o molho ferrugem de dona Leonor.

MM. Vero! Mas e as novas tecnologias?

GF. Tecnologia é coisa de caipira.

MM. Você está desconsiderando as pipocas do forno de micro-ondas.

GF. Oquei, tirando as pipocas do micro-ondas. Nós sabemos que o bicho homem é um caipira incorrigível, um deslumbrado. Ele inventa esses avatares, plasmas, bites e chips para se distrair da própria mediocridade. E eu acho isso ótimo.

MM. Mesmo?

GF. Meu ganha pão.

MM. Internet?

GF. O mundo virtual é o reino dos vacilões. Manja o malandro berimbau?

MM. Claro, aquele que dá o cu pra não gastar o pau.

GF. Sim, o velho Berimbau. Me especializei nisso.

MM. A área é próspera... você pode ir longe, voar por constelações muito mais comprometedoras...

GF. Eu prefiro atuar na arraia miúda. Depois, não quero arrumar dor de cabeça. E tem a preguiça também, daí a especialização do Berimbau.Você me conhece.

MM. Sim, de outros carnavais.

GF. É o que mais tem na internet, malandro berimbau: fulaninho que apostou tudo no anonimato.Achou que estava protegido, e agora está quebrando a cara.

MM. Não protege?

GF. Na verdade, identifica. O pseudônimo é a assinatura do anônimo. Ele tem um. Ou vários. Tanto faz. Como se fosse uma marca d’água da sua ingenuidade.

MM. Ora, anonimato não é um crime, Guerra.

GF. O anonimato já é uma punição em si mesma. Uma infelicidade que deixou de ser inofensiva nos tempos da internet. Já ouviu falar em falsidade ideológica, infâmia, difamação e calúnia seguida de intimidação?

MM. Bullying?

GF. Isso. Tá na moda. A coisa mais fácil do mundo, hoje em dia, é um simples anônimo ressentido juntar uma coisa com as outras e se transformar num criminoso. Capisce? Até uma criancinha do ensino básico consegue... chegar a bom termo.

MM. Sou contra.

GF. Contra as criancinhas do ensino básico?

MM. Sou contra o monitoramento, qualquer tipo de monitoramento. Isso é fascismo.

GF. Não interessa se você é contra ou a favor. Tá todo mundo monitorado.

MM. E devendo pro mesmo banqueiro lírico.

GF. Aí já é macro-sacanagem.

MM. Não se trata disso?

GF. Mirisola, meu caro. Estávamos falando de criancinhas do ensino básico, lembra?

MM. Você disse todo mundo.

GF. Amici.

MM. Quié?

GF. Você tem ido muito à praia? Tá com ensolação, meu?

MM. Explica.

GF. Já ouviu falar em HD?

MM. Já ouviu falar em lan house, Guerra?

GF. Ai, ai, ai.

MM. Que foi?

GF. Acho que você está apaixonado pela Brisa. Tenho inveja de você.

MM. Ah, a Brisa...

GF. Imagina mil lan houses. Imagina que o obcecado frequente as mil lan houses todos os dias.

MM. Sim, imaginei.

GF. A obsessão é uma só. O alvo dele é sempre o mesmo. Concorda?

MM. Sim.

GF. Quantos pseudônimos ele pode ter? Três, quatro, cinco?

MM. Se fosse Fernando Pessoa, teria heterônimos também.

GF. Tanto faz. Heterônimos ou Pseudônimos. O que conta é o alvo e não de que forma vem a intimidação. Que nem precisa ser intimidação, aliás. Como eu disse, é muito comum associar falsidade ideológica com intimidação, o que agrava a coisa.

MM. Daí que...

GF. O crime de falsidade ideológica já é mais do que suficiente para comprometer a vidinha pacata de qualquer anônimo metido a malandro. Existem sites que têm cadastros, o que torna a presa mais vulnerável. Para cada cadastro um HD.

MM. O site pode não disponibilizar o cadastro...

GF. Uma contradição em si. Para isso que, em tese, servem os cadastros. Para dar credibilidade, e proteger os sites. Em último caso, são obrigados a disponibilizar as informações... se a lei for acionada e assim o exigir. O interesse é dos sites. Geralmente eles facilitam.

MM. Mesmo assim, o verme poderia se cadastrar com um email falso. Ou com vários emails falsos.

GF. Pensa comigo: mesmo que ele tenha criado um email falso, é quase improvável que, numa dessas lan houses, ele não tenha fornecido cic e rg. Mas digamos que não, o que eu acho difícil.

MM. Digamos.

GF. Imagine, então, que num belo dia, no afã de cometer seu bullying, ele tenha usado o computador pessoal ou o computador de um familiar ou de um amigo próximo. Não tem por onde, entende?

MM. Não?

GF. Ainda que o cara seja um Hannibal, um psicopata enxadrista, obcecado e meticuloso, que não tenha deixado pistas em lan houses, e jamais tenha usado seu computador pessoal ou de amigos para cometer bullying, mesmo assim, em sete segundos, cruzando emails falsos, cadastro do site, pseudônimos e HDs, eu consigo localizar o vacilão em qualquer lugar do inferno – ele pode até ser um fantasma, porém é quase impossível que seu ectoplasmazinho não esteja registrado em algum lugar.

MM. O cara não pode nem mais ser um filho da puta?

GF. Filho da puta ou filho da santa, não importa. O pau sujo de galinheiro virou uma instituição nacional.

MM. Assim como a babaquice, os tribalistas e a Ivete Sangalo institucionalizaram-se. Compreendo. Mas localizar não é identificar.

GF. Isso é trabalho fácil. Um plantão resolve.

MM. Você acha que a polícia vai perder tempo com isso?

GF. As provas podem ser juntadas por qualquer um. Até por um fumante inveterado e boêmio como eu que, por uma dessas redundâncias da vida, acabou se especializando nesse esgoto que é a alma humana.

MM. Você deve estar muito atarefado ultimamente.

GF. Demais, e nunca estive tão imundo, prospero e redundante.


MM. A alma fede.

GF. Nós sabemos que sim. Fede muito.

MM. Tá comendo a Sarah?

GF. Aceita outra dose?

MM. Quem diria, Guerra Fortes entornando bourbon...

GF. Ela ciscou um mês inteiro lá na kit.

MM. E depois o vizinho chamou a polícia.

GF. Chamou.

MM. A mesma novela mexicana de sempre. Seguindo a linha de raciocínio...

GF. Lá vem.

MM. Digamos que você identifique o verme virtual. Ele não vai ser preso.

GF. Mas vai ser identificado, e vai responder processo. A exposição para um anônimo é pior do que a condenação a morte. E para isso, meu caro Mirisa-boy, basta a vítima do bullying protocolar uma queixa na delegacia mais próxima.

MM. E o Caveirinha? Teve notícias dele?

GF. Parece que ele tá morando na Praia Grande. Ou ele dava um tempo ou davam um tempo nele.

MM. Ou ele dava um tempo em mim. Né?

GF. Pois é. Fiquei sabendo que ele queria te matar.

MM. E eu não queria morrer...

GF. Você é mais debochado do que prudente, Mirisa-boy.

MM. Eu me divirto.

GF. Eu sei qual é a sua diversão.

MM. Sabe de tudo, né?

GF. Só não sei por que o Karatê Kid luta Kung-Fu.

MM. Lembra da Martinha?

GF. Inesquecível.

MM. A filha da puta me passou uma gonorréia.

GF. O velho e bom e romântico Mirisola que nos abandonou. O habitante dos gris, desvãos e quartinhos de empregada. O homem que adquiriu o grito no deserto. Subversivo por excelência. Nômade, melancólico. Nascido sob o signo da maldição, assombrado pela lua capricorniana de Hitler. Aquele que sobrevoa abismos infernais. E o que mais?

MM. Encalacrado na Casa da Morte!

GF. Ah, é. Vossa excelência está todo fodido!

MM. Hoc opus, hic labor est.

GF. Traduzindo...

MM. Esse é o trabalho, essa é a fadiga. Um hemistíquio de Virgilio, está lá na Eneida. Sobre a dificuldade de se voltar do inferno. Em outras palavras: não é pra qualquer pangaré. Há que se ter cojones!

GF. Para a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo! Um brinde! Salut!

MM. Salut!

GF. Porra, Mirisa-boy...

MM. Qual é?

GF. Hemistíquio é de doer, hein? Só um cara que sabe o que é um hemistíquio poderia pegar uma gonorréia hoje em dia. Se cuida, merrrmão. Não é assim que se fala no Rio?

MM. Isso aí, brother. E é claro que eu não vou recomendar o mesmo para você. Qual era mesmo seu lema?

GF. Você ainda lembra disso?

MM. Tava impresso no seu cartão.

GF. Golpe baixo, Mirisa. Era apenas um marketing tosco.

MM. Do tempo que você assessorava o Fininho.

GF. Até o Fininho vacilou.

MM. Todos vacilam, menos o Guerra do cartão. Eu lembro: – “Detetive Guerra Fortes, não vacila jamais”.

GF. A gente sempre vacila. Sempre. Tem gente que pega gonorréia!

MM. Tem razão, Guerra. E antes de mandá-lo tomar no cu, gostaria de notificar vossa senhoria que um hemistíquio é a metade de um verso alexandrino ... e a Martinha continua sendo a melhor foda da Treze de Maio.

GF. Segunda-feira ao meio dia, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. Se você não aparecer na pensão da dona Leonor, é um homem morto.

Depois desse ultimato, Guerra Fortes fez questão de pagar a despesa, e eu peguei o Butantã-USP na rua da Consolação.

Talvez tenha sido a lembrança do filho da puta do Fininho (deem uma googada: “Fininho, esquadrão da morte”) que me remeteu a uma passagem de Meridiano de Sangue, livraço de Cormac McCarthy:

Kid, o segundo pior de todos, se deparou com uma carroça de mortos e sua carga de cadáveres: “Três homens sentavam à boleia, não diferentes dos próprios mortos ou de espíritos, tão brancos estavam com a cal e quase fosforescentes ao sol poente. Uma parelha de cavalos puxava o carro e seguiram adiante pela estrada envoltos em um tênue miasma de fenol e sumiram de vista. Ele virou e observou-os partir. Os pés descalços dos mortos sacolejando rigidamente de um lado para outro”.

Os pés descalços dos mortos sacolejando rigidamente de um lado para o outro. Isso é uma partitura, Beethoven na veia. Taí. Vai ser o título da crônica.

** Guerra Fortes é repórter especial da Revista Artigo 5º. Uma publicação da Associação Cultural dos Delegados da Policia Federal pela Democracia, seção São Paulo, cujo editor-chefe é o delegado Armando Rodrigues Coelho Neto. Endereço: rua Nestor Pestana 125, conjunto 76, Consolação-SP tels: 3402 37 00 – 3237 2390 email: artigo5@acdpf.org.br.

* Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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