Ramalhete de "Causos"

O cachorro do Tonico

José Ronaldo dos Santos
O finado Dário Barreto, entre tantas qualidades e defeitos, era ótimo amestrador de bichos, mas nunca ensinou a ninguém tal arte. Sendo assim, nenhum de seus descendentes, procurados por este que aqui escreve, soube comentar com mais detalhes ao tema deste texto. Aproveito a ocasião para destacar outra característica do admirado caiçara: criar princípios morais para quem estivesse ao redor. Hoje, para prestar uma homenagem póstuma ao tio Tonico, muita atenção às palavras do homem sabido, na sombra do abricoeiro da Maria Tereza, num distante dia do ano de 1970:

“Escute, menino: não consigo imaginar uma vida sem amigos, sem bons amigos. No dia-a-dia, no corre-corre, quem nunca se amparou em alguém para ao menos respirar sossegado? Geralmente são de dentro de nossa casa as nossas primeiras e eternas amizades, mas também pode acontecer de outro jeito. Agora, eu quero só me referir aos cachorros. Já tive alguns que sempre foram levados pela idade, mas de qualquer um deles ainda guardo as lembranças dos momentos marcantes. Dos cachorros dos outros e daqueles que nem donos tiveram também trago marcas no corpo e no espírito. Existe um cão preto grande, sempre a arfar, medonho, conforme disse a sua vó. Era um lobisomem; de vez em quando ele está no meu pensamento. Outro, da mesma categoria, descrito pelo Genésio do Camburi, se faz imponente em cima da pedra, ladra, borrasca a parede e voa na capoeira. Causa arrepio só de pensar!”

O Dário continuava a falar. Os meus olhos se fechavam; os ouvidos queriam fazer o mesmo. O dia virava para a tarde; ventos de fora traziam canoas que ao mar se fizeram, ainda madrugada, na pescaria de peixe-porco. Os traquetes mal se anunciavam na Ponta e já embicavam no lagamá.

O contador entrava nas minhas observações enquanto eu me apagava no vai-e-vem da maré. Arengava no mesmo ritmo: “Essa viração de fora é coisa boa! É alívio aos braços dos remadores! Quem conhece, sabe! O sol tá quente, menino! Sabe o que faz aquele cachorro em cima do rolo no meio da areia fervendo? É do Tonico. O nome dele é Duque. Ele fica sempre guardando os rolos da canoa e os chinelos enquanto seu dono está no mar. Ai daquele desavisado que tentar esbarrar em qualquer coisa dali. Coitado! Até parece o meu cachorro Japi. Sabe que o cachorro do Tonico aprendeu com ele? Ele sempre viu o outro fazer isso e agora tá copiando. É igualzinho! E por falar no Japi, olha lá, na direção da amendoeira tombada! O danado tá quase nas grimpas. Isso não foi ensinado por mim. É arte da Maria, minha mulher. Agora é tempo de cará-moela; ela precisou de quem subisse no mais alto da aroeira fazer a colheita; para isso treinou o cachorro”.

Hoje, depois que contei tal causo aos meus filhos (Maria Eugênia e Estevan), um deles falou: - Será que o tio Tonico agora está com o Duque no céu?

Depois desta lembrança, fiquei com uma desconfiança de que o sabido roceiro-pescador, na verdade, tinha aprendido com a esposa todos os truques que sabia para ensinar os bichos.

Leitura recomendada: "Os caiçaras contam", uma publicação da Fundart do tempo do prefeito Zizinho Vigneron.


Boa leitura!

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