Opinião

Reação desproporcional

Editorial do Estadão
Uma forma de loucura, dizem os especialistas, é a repetição de atos cujo desfecho será invariavelmente desastroso para quem os pratica. Este é o círculo vicioso que Israel vem traçando com o seu incrustado senso de soberba, alheio ao que Thomas Jefferson chamava "respeito decente pela opinião da humanidade". O país que professa desejos de paz com os seus vizinhos e se considera permanentemente ameaçado enveredou pela contramão do único caminho para o seu reconhecimento e segurança no Oriente Médio - a aceitação de um Estado palestino viável, ainda que numa fração do espaço demarcado pela ONU em 1947.

Se Israel tivesse planejado hostilizar a comunidade internacional e desalentar os seus amigos, não poderia vir fazendo melhor - na Cisjordânia ocupada, no Sul do Líbano, na Faixa de Gaza e, agora, em alto-mar. Por qualquer critério político, foi insana a decisão israelense de abordar em águas internacionais o Mavi Marmara, de bandeira turca, na madrugada da segunda-feira.

Ante a reação dos passageiros, os comandos mataram uma dezena deles. O maior e mais carregado dos 6 navios que transportavam 671 ativistas de 32 nacionalidades e 10 mil toneladas de suprimentos, o Marmara encabeçava a "flotilha da liberdade" para socorrer o 1,5 milhão de habitantes de Gaza.

Desde 2007, quando o movimento fundamentalista Hamas, que se recusa a aceitar a existência de Israel, assumiu o poder no território, Israel bloqueou a área para sufocar o governo inimigo. Fustigados pelos foguetes do Hamas, na virada de 2008 para 2009, os israelenses desencadearam uma brutal ofensiva que matou mais de 4 mil civis, acarretou imensa destruição e deixou a população local à míngua. A reação desproporcional e a punição coletiva aos civis chocaram o mundo. O Conselho de Segurança exigiu o levantamento do bloqueio e o ingresso irrestrito da ajuda humanitária.

Israel deixa entrar uma parcela apenas dos bens de que Gaza necessita - e aparentemente tolera o emaranhado de túneis na fronteira com o Egito, onde viceja um próspero contrabando do que se queira, incluindo armas. Eis por que se diz que a manutenção do bloqueio pelo governo do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu visa a mostrar firmeza a um público interno cada vez mais indiferente aos padecimentos de seus vizinhos árabes, quando não lhes é abertamente hostil. Já algumas vezes o movimento internacional Gaza Livre ensaiou levar suprimentos à região e foi repelido sem que uma coisa e outra repercutissem. Agora, porém, preparou uma operação de grande calado para denunciar a conduta israelense. E Israel lhe deu razão.

Se nada mais espantasse na política israelense de onipotência suicida, bastaria a disposição de levar à beira da ruptura o seu relacionamento com o único país muçulmano amigo. Turquia e Israel, de fato, chegaram a formar uma parceria estratégica, em sentido literal, algo impensável no caso do Egito e da Jordânia, os únicos países árabes que reconhecem o Estado judeu. Ancara, que chegou a mediar negociações entre Israel e a Síria, se afastou de Jerusalém depois da invasão de Gaza, mas ainda assim tinha manobras militares conjuntas marcadas para breve - agora canceladas, naturalmente.

O primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan qualificou a sangrenta interceptação do Mavi Marmara de "terrorismo de Estado" e apelou ao Conselho de Segurança. Os Estados Unidos conseguiram impedir a condenação unilateral de Israel, que alegou legítima defesa - os comandos foram atacados com armas brancas. A resolução condenou, sem especificar, os "atos" que causaram as mortes a bordo (quatro delas de turcos), e reafirmou a necessidade de livre fluxo de bens e pessoas a Gaza. Uma crise leva a outra: o destino dos mais de 600 ativistas da flotilha levados a Israel e mantidos presos por terem recusado a se identificar e aceitar a deportação (como o fizeram 45 deles). E o Gaza Livre anunciou novos embarques marítimos.
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