Tecnologia porreta

Vozes do além

Sidney Borges
Não é de hoje a minha curiosidade sobre o além-túmulo. Como todo ser humano finjo que a morte não vai chegar, sei que a atitude não passa de defesa, mero paliativo psicológico, ou se alguém preferir, medo do desconhecido. Italianos falam em paura. Não tem jeito, a magra vem por aí e se não perco o sono por isso, investigo. 

Comprei um gravador com a finalidade de registrar mensagens dos que estão do outro lado, se é que podemos classificar de lado de cá e de lá as vidas encarnada e ectoplasmática. Um dia liguei o moderno "Geloso", modelo 1966. Faço isso todas as noites desde 1979.

Deixo a fita rodando e na manhã seguinte ouço. Nada aconteceu até que em 3 de maio de 1976 um ruído de baixa freqüência chamou minha atenção. Nos dias que se sucederam o ruído continuou. Levei a fita a um especialista. Uma semana depois o telefone tocou:

- Pois não...
- Sidney?
- Em carne e osso.
- É o "Caboclo Dolores".
- Quem? Não conheço.
- Aqui é o Alberto do laboratório de som. Você deixou uma fita para ser decupada. As gravações são de um cara que diz ser o Caboclo Dolores. Tem voz afetada.
- Obrigado, vou já.

Assim fiz, peguei as transcrições. Não faziam sentido, falavam em chave de fenda, Ramon, queijo de cabra e seda chinesa.

Continuei a pesquisa, para melhores resultados comprei outro gravador, mais moderno, japonês, Akai 4000 DS, de 1972. Na chuvosa manhã de 5 de junho de 1993 chegou um fax - tecnologia nova - com texto ininteligível. Assinado pelo Caboclo Dolores. Coincidência? Acho que até no além perceberam que o fax teria vida curta, nunca mais recebi mensagens através desse dispositivo. A única que veio, citada acima, era um borrão só.

Minha curiosidade só fez aumentar. Na semana passada um e-mail que parecia comentário anônimo do Blog apimentou minha pesquisa. Adivinhe quem enviou? O próprio, ou seria mais adequado dizer a própria? Caboclo Dolores, que tudo indica ter sido gay quando caminhou na Terra. Será que continua jogando água fora da bacia depois de atravessar a fronteira?

Desta vez a mensagem chegou clara. Referia-se a um tal de Ramon Borges, meu ancestral que teria vivido em terras romanas próximas ao Oceano Atlântico, por volta de 200 DC. Ramon ganhava a vida fabricando queijo de cabra, muito apreciados pela elite romana que se bezuntava com ele nos bacanais. Nas horas vagas inventava coisas. Nem sempre entendidas pelos contemporâneos.

Em 204 DC Ramon recebeu uma revelação em sonho. Nas semanas seguintes trabalhou arduamente até fabricar a primeira chave de fenda da história. Ficou orgulhoso, mas teve péssima recepção na aldeia. O druida até pensou em enviá-lo a Figueira da Foz para tomar ares salgados. De forma a endireitar a cachola. Incompreendido e solitário, Ramon morreu como um passarinho, atingido por um meteorito.

A história acabou não registrando um fato que agora tenho a honra de revelar. Em 381 DC, o abade Samuel Salgado, de Carregal do Sal, Portugal, tentando fazer uma escrivaninha, inventou o parafuso.

E ficou feliz por ter à mão uma ferramenta até então inútil, a dita cuja chave de fenda, que embora não servisse para nada era fabricada e vendida em larga escala. Portugal tem coisas inexplicáveis.

Fiquei feliz, inventar é da família, eu próprio trabalho incessantemente no metrô de plasma que certamente será um sucesso. Estou aguardando novas mensagens do Caboclo Dolores, quem sabe virão no pendrive.

É bastante provável que alguma delas fale de Ubatuba, da Santa Casa e da Cruz Vermelha, caso tão misterioso que só vozes do além poderão elucidar.

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