Coluna do Mirisola

Gabi no Rio

Marcelo Mirisola

Gabi, minha sobrinha, veio passar uns dias aqui no Rio. A garota mora num grotão, lá nos cafundós das Minas Gerais, perto da nascente do rio São Francisco. Ela tem treze anos e viajou apenas duas vezes na vida. A primeira vez foi ajudar o pai a carregar compras na rua 25 de março,em São Paulo. E na segunda oportunidade, fez a mesma coisa, só que na rua Santa Ifigênia. Seria muita sacanagem se, aqui no Rio, eu a levasse, sei lá, ao Saara ou à exposição de arte Soviética no Centro Cultural Banco do Brasil. Da minha parte, faria todas as vontades dela. Ela merecia.
Apesar das minhas idealizações, posso garantir que Gabi não é uma garota deslumbrada. Para mim,como escritor, seria muito mais fácil se ela fosse uma caipira padrão, e embarcasse nas maioneses,digo, lugares-comuns que eu preparei para ela viajar. O problema é que nem sotaque ela tem.
Basta dizer que Gabi não é um coelho para se tirar na cartola. Ela é minha sobrinha.
Fomos ao McDonald’s, à praia, ao Cristo e, por último, ver Harry Potter no Shopping Iguatemi – mais ou menos nessa ordem. E para mim – tirando um pequeno incidente - foi ótimo. Enfim, conheci o Rio de Janeiro que não tem nada a ver com a paisagem alheia e obrigatória que eu – paulistano tonto - carrego na memória.
Graças ao Cristo Redentor, Gabi nem faz idéia da existência de João Gilberto. Também não pôs muita fé quando viu exemplares de O Globo expostos na banca de jornais. Simplesmente não acreditava. Para ela, o jornal era de mentira. Só existia nas novelas das oito. Esperta, essa Gabi.
Por onde começo? Pelo Cristo, é claro. Achei uma violência cobrarem uma entrada inteira da Gabi, eu paguei metade porque apresentei uma conta de luz, mas valeu a pena. No final das contas, Gabi levou dois tickets de volta pras Gerais. O dela, e o meu. Ela queria mostrar pras amiguinhas de Grupo Escolar que subiu o Corcovado na companhia do tio “carioca” - foi assim que carimbaram meu ticket. De antemão posso dizer que esse carimbo foi a melhor parte do passeio. O resto é o que segue.
Entramos num bondinho cheio de italianos. A princípio ... engraçados, vá lá, muito tagarelas e barulhentos. As mulheres penteavam os cabelos, riam muito e não paravam de tirar badulaques das bolsas. Os homens apontavam pra lá e pra cá o tempo inteiro. Tinha um narigudo que se comunicava aos assovios.
---- O que eles estão falando, tio?
---- A mesma coisa que os seus tataravôs falavam quando chegaram no Brasil.
---- O quê, tio?
---- Bobagem, Gabi.
Se fosse só bobagem, tudo bem. Conforme o bondinho adentrava na mata os italianos ficavam cada vez mais excitados, dos gritos passaram aos berros. A Gabi, que tem somente treze anos, e vivia a mesma experiência dos italianos, queria saber:

---- Eles não tem educação, tio?

---- Não, Gabi.E pelo jeito não faziam a menor idéia de onde estavam. Um deles procurava o Pelourinho no mapa gastronômico de Santa Teresa, e queria saber quantas mulatas iriam recebê-los lá em cima, quando chegassem ao King Kong, digo, Cristo Redentor. Avaliei que deviam estar cansados da viagem, e resolvi mudar de assunto. Lá veio a Gabi. Ela me perguntou se eram aqueles os italianos que moravam num lugar que a mãe dela e o meu irmão viviam chamando de “primeiro mundo”. Eu pensava comigo mesmo, “Cazzo! Aquele narigudo parece comigo!”.
--- Não, Gabi. Eles não moram no primeiro mundo. Esse lugar não existe.
O bondinho seguia vagaroso, e se deixava cada vez mais engolir pela mata densa e igualmente murmurante. Os italianos competiam pra ver quem gritava mais alto. Dos berros passaram ao histerismo. Gabi, que vive numa região que podemos chamar de cerrado, queria saber se aquela era a Mata Atlântica que havia estudado nos livros.
--- E´sim, Gabi. Ou foi o que sobrou ... no meio dessa gritaria.
De repente, um italiano aponta para a copa de uma árvore, e levanta a voz acima de todas as outras vozes: “Guarda! Guarda la su in quel àlbero: un brasiliano! Un brasiliano! Guarda! La su ... Un brasiliano! Guarda! Guarda! In quel àlbero!”
A Gabi olhou pra mim, e eu olhei pra Gabi, e ela fez a pergunta fatal:
---- O que ele tá falando, tio?
Preferi não traduzir, e disse a ela que meus tímpanos haviam dado Tilt ( mais por conta das merdas que ouvira no belo idioma de Dante do que pela altitude).
--- Tilt? O que é isso, tio?
Nada, Gabi. Deixa pra lá. Ao chegar à estação, um grupo de quatro negros desanimados nos esperava, tocando ... adivinhem? Aquarela do Brasil.
Dali pra frente, o previsível: os italianos sambaram lá do jeito deles, Gabi começou a disparar milhões de fotos, e eu pensei na Juliana Paes.
Há pouco tempo escrevi uma crônica dizendo que aqueles olhões de peixe dela saltados pra fora das órbitas não me enganavam, a mulher só tem bunda, reparem , ela parece um ET, olhuda, lembra aqueles cadáveres que morrem afogados, em suma, tirando a bunda é uma atriz medíocre e uma mulher comum que podia estar grávida no ponto de ônibus,e agora – vejam só - processa o Macaco Simão por causa de um trocadalho igualmente bundão e pedestre. Ou seja, é o debate que temos no Brasil de hoje. Além da família Sarney,é claro. Que usa o dinheiro público para pagar desde o hors d’oeuvres do carteado até o gigolô da netinha. O que mais? Outros milhões de Simões, brasileiros e brasileiras bundudas, dependurados nos galhos,e no cartão de crédito: Guarda! Guarda! In quel àlbero! Un Brasiliano!
Harold Bloom chamaria isso de angústia da influência. Eu – que já sofri da angústia de ter sido influenciado por Pavese – agora tinha de lidar com essa rebarba de zoológico napolitano. Só podia ser isso. Pensava nos meus bisavós desembarcado no porto de Santos há cento e quarenta anos, e vislumbrava a bunda da Juliana Paes “Olha lá, Olha lá em cima da árvore! Um brasileiro!”... Quando – no meio desse samba do imigrante doido - sofri uma espécie de epifania ou curto-circuito ético, étnico, antropológico ou a porra que o valha.
Que merda! Walt Disney e o Zé Carioca morreram em 1966. Será que esses italianos não têm Internet em casa? Qual é a deles? Esses caras dão o rabo pros nossos travestis, acham que o Pelourinho fica em Sta.Teresa, votam no Berlusconi e vem aqui me tirar de macaco? E o pior, aquele narigudo sem queixo, o mais esquisito do grupo que falava aos assovios, podia ser o meu irmão gêmeo!
Prosseguimos o passeio. Dessa vez, Gabi atravessou minhas sinapses angustiantes logo debaixo do sovaco do Cristo:
---- Que lugar é aquele, tio?
---- Botafogo, Gabi. Aquilo lá é o Cemitério São João Batista.
---- Bonito né?
---- Também acho. Mas não vai dar tempo de conhecer. E se eu a levasse a um cemitério, o seu pai nunca mais deixaria você voltar ao Rio de Janeiro. Vamos a praia hoje?
---- Antes do McDonalds?
---- Você que sabe, Gabi. Se quiser deixamos a praia para amanhã.
O tempo fechou e Gabi não conseguiu entrar no mar de Copacabana. Quanto ao Harry Potter, até que foi legal. Um público de marmanjos hipnotizado. Eu e minha sobrinha assistimos aquela besteirada de mãos dadas. Dessa vez,cobraram meia entrada da Gabi. E, confesso, tive uma boa sensação. Me senti selvagem e feliz, naquele lugar que os pais da Gabi chamam de primeiro mundo (Shopping Iguatemi): feliz e selvagem, como jamais havia me sentido assim, quase um etrusco.

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


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