Coluna do Mirisola

Lirismo, 1,2,3

Marcelo Mirisola*

O inventário

Oi, Celso. Tudo bem?
A Casa aqui em São Paulo é de vila, rua estreita. O ideal seria um caminhãozinho. Não é tanta coisa, só vou levar mesmo os meus livros preferidos. O endereço é Bruno Simoni 35, uma travessa da rua Butantã (bem no começo da rua).

Vamos lá:

São 5 caixas grandes e umas 20 caixas pequenas e médias com os livros.
1 mesa-escrivaninha
2 cadeiras
4 prateleiras ( que eu vou desmontar)
1 mesa de centro
1 quadro
1 sofá de dois lugares
1 criado-mudo
Um banquinho e mais solidão que contém cada coisa: isso, meu caro amigo,é o que pesa mais.

Se o caminhãozinho chegasse de manhã seria ótimo. Por favor, recomenda por pessoal aí tomar cuidado com quadro ( foi a Esther que o pintou, gosto muito).

Abraço, e obrigado,

MM


A Colomeia Havaiana

Pedi para ela regar a plantinha.
Logo eu, que nunca tive plantas em casa e nunca fiz poesias. Da antiga sabujice, apenas me sobrou o gosto pelas mudanças. E a mania das aspirinas. Também não perdi o hábito de fumar cigarros invisíveis e escutar o barulho das ondas que quebram nas áreas-de-serviço. Quando morei na Pça. Roosevel, no centro de São Paulo, era comum ouvi-lás na hora do rush. Acho que o nome disso é dom. Tem gente que tem dom para jogar pingue-pongue. O meu dom é escutar a arrebentação nas áreas-de-serviço. Às vezes elas se erguem nas tubulações. O que é mais raro.

Eu e minha alma de classe média só existimos assim. Nas mudanças, nos apartamentos vazios. Por enquanto só tenho o vaso com a plantinha e o colchonete, e nada mais. O combinado foi que a mudança chegaria na próxima segunda-feira;

Ela achou uma boa idéia essa da plantinha. “Vai te fazer bem” – me disse-: “vai ser um exercício pra você, assim você cuida de alguma coisa”.

Ora, esse comentário faria algum sentido se a planta fosse um presente dela. Não era o caso. Eu que cismei e fui comprar a porra da plantinha, simpatizei com o jeitão desgrenhado dela, na vitrine. Entrei na loja e quando a vendedora me disse que era uma Colomeia Havaiana, levei na hora. Portanto, foi uma escolha. Afinidade, gosto, uma escolha sintática igualmente. Por que eu não cuidaria da planta? E também fui eu quem providenciei o buraco no teto. Exagerei no buraco, mas e daí?

Colomeia Havaiana, o nome da plantinha: lindo nome, aliás. E têm flores que brotam parecidas com a taça de Julies Rimet, aquela que o Carlos Alberto beijou no tri de 1970. Prefiro a seleção de 82, mas esse é outro papo.

Olhando de outro ângulo, a Colomeia (ou seria Aleteia.... ?) parece uma Naja abrindo a boca. Tem até lingüinha, a porqueira. Ela ( não, não estou falando da Naja) mas da mulher, fez questão de ser a primeira visita. Achei estranho quando me disse que, hoje, contentava-se apenas em ser minha escrava. Desconfiado, descartei o tesão.

Ato contínuo, ela se dispôs a regar a Colomeia Havaiana na minha ausência e disse que também daria um jeito na roupa suja entulhada no bidê.

“Não se usa mais”

“E eu vou andar por aí, pelado?”

“Bidê, seu animal.”

As flores da Colomeia - em forma de ... vá lá, Taça Julies Rimet – são (ou foram...) ostensivamente vermelhas. E um tanto agressivas, eu diria. Mas ela quis ir além, disse que a planta era brega, e sentenciou: “pior se fosse uma samambaia”. Tentei defender nossa mata atlântica e a suposta flora havaiana, e acabei levando nas fuças um “passe bem,você e essa planta, me esqueça”.

Primeiro, lembrei de Caio Fernando Abreu. E considerei as viadagens dele com relação aos seus jardins. Se estivesse vivo eu iria consultá-lo: existem plantas bregas?

Eu gostava daqueles textos jardineiros do Caio F.. Depois, olhando para a Coloméia, na dúvida, irrompeu novamente a Taça Julies Rimet, não era mais Naja porque não havia nenhum sinal de lubricidade, era somente resistência – tantas vezes Carlos Alberto a beijou, tantas vezes. E aí me ocorreu que o nosso amor era um troféu velho. Uma flor havaiana que – apesar da breguice ... - brotava outra vez no apartamento vazio.


Encerramento e Temporada e o Retorno da Velha

Oi, Guzik,

Lembrei de uma época curiosa da minha vida. Nem de longe eu podia imaginar que seria um escritor. Qualquer coisa, menos "artista". Naquela época, era comum – como hoje - zapear a tevê e, de repente, encontrar um ator ou atriz falando sobre o personagem. Você não faz idéia de como esses depoimentos me aborreciam, e entediavam. Quando eles falavam em "construção de personagem" então, aí é que eu jurava para mim mesmo que jamais me aproximaria de um teatro. Sempre que eu ouvia falar em teatro me vinha à mente um velho que usava batas e falava com as mãos, você não imagina o quanto isso me entediava.

Não é que lembrei de mim mesmo ou de “qualquer coisa, menos artista” quando te vi encarnado na minha Velha? Ontem de noite presenciei aquilo que, para mim, era a coisa mais aborrecida do mundo, e não é que fiquei fascinado?


Meu Deus! Desde a estréia até o encerramento você construiu a Velha de uma tal maneira que ela, hoje, tem rg,cic, passaporte carimbado pra Miami... e per-so-na-li-da-de. Caramba! Olha eu aqui: falando em construção de personagem! E não é que o público reage e vibra com isso, e eu vibrei como público ontem, fui pego de surpresa ( mais uma ) e quase esqueci que fui eu –aquele cara acima de qualquer suspeita - quem escreveu – veja só – o “Monólogo para a Velha Apresentadora”.


Muito obrigado, a você e ao Chico, que também participou tanto da "construção da Velha" como da demolição de um cara que, um dia, jurou que jamais pisaria num teatro enquanto fosse ele mesmo.


Grande abraço,


MM


P S. Só pra dizer que, em agosto, a Velha voltará a se apresentar no teatro dos Satyros, na Pça. Roosevelt, em São Paulo. Acho que às sete da noite, a confirmar. Mas antes disso, na última semana desse mês de julho, mais precisamente nos dias 25 e 26 às 18h:30 min, Ela vai fazer duas aparições na cidade abençoada por Deus e bonita por natureza e pelas balas perdidas, no teatro Sergio Porto. Isso aí, fiquem ligados vocês do Rio de Janeiro.

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


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