Crônica

Férias interrompidas

Marcelo Mirisola*
Uma bola. Um pé para chutá-la. Na frente disso, dois postes verticais equidistantes da lateral e unidos na parte superior por uma barra horizontal. Ia falar em trave, travessão, contudo achei melhor não encompridar. A distância entre um poste e outro deve ser de mais ou menos de 7 metros. Quanto à distância da borda inferior do travessão até o solo – sei lá – que tal 2 metros e trinta ou quarenta centímetros? Por aí. O objetivo é enfiar a bola lá dentro. Tem um cara, chamado goleiro, que procura evitar que isso aconteça. E tem outro (geralmente do time adversário) que tentar enfiar a bola no meio desses dois postes verticais – e embaixo do travessão – de qualquer jeito. Quando isso acontece, o nome é gol.


Simples, né? Eu – ainda – estou de férias. No meio de uma mudança pro Grajaú, e quase que entro em luta corporal com um sujeito que se dizia pedreiro, pintor, eletricista, bombeiro (encanador aqui no Rio) etc, mais conhecido no bar da esquina como “Tião Faz Tudo”. Não quero entrar em detalhes, o assunto é outro, mas esse filho de uma puta demorou um dia inteiro para parafusar o espelho do banheiro e trocar duas lâmpadas de lugar. Tive de ir pessoalmente à casa de materiais de construção depois que o espertalhão chegou com uma conta de 100 reais (só de parafusos). Não posso ouvir falar em “bocais”, fita-isolante, tomadas, interruptores. A questão é que, por conta do Tião Faz-Tudo eu estava realmente exasperado. O momento não era propício: ainda esperava pelo colchão que não seria entregue, e havia sido apresentado ao meu vizinho cachorro que – segundo informações do zelador – late todo dia das 7 às 10 da manhã. Difícil. Nesse momento crítico fui abduzido por uma nave extraterrestre. Baita confusão mental. Os ETs acabavam de chegar do Parque Antarctica, em São Paulo. E queriam saber por que aquele sujeito que tentava evitar que a bola entrasse dentro do gol, enfim, o tal goleiro, o cara que ficava sob o travessão, era um santo. Um herói, milagreiro, gigante, o diabo.

Eu ainda com a cabeça quente e o sangue fervendo nas veias, uma vez que não pagaria – n.f. – mais oitenta reais pro picareta do Tião Faz-Tudo, nem aqui nem em outra galáxia, enfim, mais explorado do que uma galinha de granja, tive que começar explicando aos ETs que superlativos existiam para aumentar determinadas características humanas (ou desumanas). Dependia do caso. O Tião, por exemplo, era um grandessíssimo fdp, safado, picareta. No outro extremo, um atacante que partia do meio de campo e driblava toda a equipe adversária, devia ser considerado, no mínimo, um craque... e fatalmente iria fazer um golaço, e assim por diante. Foi quando levei o primeiro choque. O ET irritou-se. Achou que eu estava zoando da cara dele.

“A bola apenas entrou no gol”, disse o ET ao justificar o primeiro choque.

E no caso de a bola não entrar? No caso de o goleiro interromper a trajetória da bola: “Nesse caso, por que o goleiro é herói?”

Também acho que não tem nada de herói. Mas o Galvão Bueno diz que é um iluminado e o escambau. Por que esses ETs de merda não abduzem o Galvão Bueno? Ou sei lá, o Neto, ex-batedor de faltas do Corinthians e atual palpiteiro de mesa redonda? Por que eu? “Por que São Marcos?”

Ah, meu Deus... eu teria que explicar a diferença (ou a semelhança...) entre os Santos da Igreja Católica e os Orixás do Candomblé, ia ter que necessariamente passar pelo Caetano; e se não fosse o bastante, ainda havia os intelectuais que se confrontavam com o Neto nas mesas redondas depois das partidas e os conflitos religiosos no Oriente Médio, um tal de Jesus quentinho, e o Xico Sá pondo lenha na fogueira, enfim, como é que eu poderia explicar que, todas as segundas-feiras, os principais meios de comunicação do país, não só os jornais, mas a televisão,o rádio e a internet, a padaria e o bar da esquina não falavam em outra coisa...?

O puto do ET me interrogava sob uma luz forte e ouvia uma musica estranha, que, às vezes, era apenas silêncio, e pausa. Mas era música. Que música bonita.

Voltando à tortura. Todos nós sabemos que acontecem coisas mais importantes aqui em nosso planeta, por exemplo: o derretimento das calotas polares e a reviravolta que Ronaldinho havia dado em sua carreira. Ele mesmo, o Fenômeno, o sobrenatural, o maior craque de todos os tempos, aquele que, segundo o Milton Neves, superou todos os obstáculos e que, agora, estava encrencado outra vez por conta de uma propaganda da cerveja, o cara que havia deixado o queixo do Pelé cair em plena Vila Belmiro etc, etc. Tentei explicar ao ET que Ronaldo era o Super-Homem brasileiro, que os feitos do rapaz superavam até os do nosso Super-Presidente da República (que também é corintiano), eu tentei, mas quando eu disse que Ronaldinho havia traçado a Cicarelli, bem, o ET perdeu a paciência e ameaçou recomeçar a sessão de choques. Eu tentei lhe explicar que não era minha culpa. Eu era ou sou (ou fui sabe-se lá) apenas um miserável de um abduzido que havia sido enganado pelo Tião Faz-Tudo. Tentei argumentar que futebol era coisa séria. Que existia gente seriíssima que se ocupava dia e noite do assunto. Não necessariamente o Milton Neves nem o Datena, mas sujeitos que tinham uma reputação de esquerda a zelar, gente acima de qualquer suspeita, intelectuais do feitio de Juca Kfouri, Marcelo Paiva e até o Clóvis Rossi, eram eles, enfim, que faziam coro ao Ratinho e ao Paulo Maluf, todos concordavam que Ronaldo Nazário era o Nosso Homem, um gênio iluminado que subjugava os incrédulos chutando bolas para dentro do gol, fazia golaços. Foi o que bastou pro ET me aplicar mais um choque.

Ele simplesmente não acreditava naquilo. Eu já não tinha argumentos, porque – pensando bem... – argumentos não há. Eu ia falar em épicos, epopéias, Luis Pereira, Ademir da Guia, pensei no Casão e no Sócrates, nos grandes do futebol, pensei até em apelar para a elegância do falecido Telê Santana, mas não tive forças. Voltei ao Ronaldinho, insisti, enfim, que Ronaldinho era o cara que chutava as bolas que entravam no meio dois postes verticais eqüidistantes da lateral e unidos na parte superior por uma barra horizontal, o gênio, homem gol, etc, “mas o que ele faz, além de enfiar a bola lá dentro?”, queria saber o ET. Porra meu! Ele come todo mundo, faz gol, ele faz golaços (nesse momento o ET me aplicou um choque no escroto direito, e eu prometi me controlar...) tentei explicar que no momento em que Ronaldinho enfiava a bola no fundo do gol – local cuja grama se recusaria a nascer outra vez por reconhecimento ao gênio – nesse momento, uma multidão de corintianos tinha orgasmos múltiplos, e outra multidão de palmeirenses, santistas e são paulinos morria de raiva porque o Ronaldinho jamais ia dar uma colher de chá na equipe deles. “O que são orgasmos e colheres de chá? Teria alguma relação com a santidade do goleiro?”

Ih, cacete. Ia ter que voltar ao Marcos, o homem ou o santo que pulava de um lado para o outro para evitar que as bolas entrassem dentro daqueles limites enfadonhos que citei aí em cima. O ET queria saber se Ronaldinho também era um santo. Sim, acho que sim. Eu achava mais, embora – com medo de outro choque – não falei para o ET que Ronaldinho era um Deus para nós aqui na terra. Os orgasmos, em todo caso, guardavam alguma relação com culpa também, acho, e quando eu ia falar que culpa era um negócio que particularmente me dava tesão, o ET interrompeu minhas explicações, e disse: “Isso que você está ouvindo é Erik Satie”.

Quem? Por que todas as segundas-feiras – queria saber o ET: – “os jornais e as rádios e as emissoras de televisão não fazem circular essa música?” Que música as pessoas ouvem na padaria?

O tal do Satie também era um terráqueo, me disse o ET, e ele nunca chutou uma bola para dentro de um gol. Caralho, como assim terráqueo?

A música era boa mesmo, e eu tentei – mais uma vez explicar – que o Tião Faz Tudo não curtiria trocar as noticias do time de sua preferência por aquele tipo de música sofisticada , e que o ET devia ouvir Jorge Ben cantando as peripécias do Fio Maravilha. “Foda-se”, disse o ET. Levei mais um choque, dessa vez no escroto esquerdo. O alienígena fez questão de ressaltar que não era besta, e que não acreditava em numerologia: depois que o Jorge Ben virou Benjor, ele não acreditava mais na espécie humana, apesar da belíssima música que ouvíamos ao fundo. “Cacete” – pensei comigo mesmo – por que nunca ouvi Erik Satie? Precisou um ET maluco me dar uns choques no saco para ouvi-lo?

Não é que, no fundo, aquele filho da puta de ET estava bem informado? Aí eu perguntei para ele: mas pra que time você torce ET? Ele matou no peito, meteu uma trivela e respondeu de bate-pronto: “torço pro futebol acabar, sua besta”.

Sei lá, eu já tinha ouvido essa resposta em algum lugar. “E antes que você me fale em Nelson Rodrigues” – disse o ET – “vou lhe aplicar mais um choque nos testículos, no esquerdo e no direito de uma só vez, para você largar de ser um deslumbrado”.
E depois da penúltima sessão de choques nos testículos, ele me deixou num terreno baldio, perto da Pça do Cimento Branco, pra lá de Inhaúma. Fui devidamente assaltado, e cheguei ao Grajaú apenas no dia seguinte. Tião Faz-Tudo me esperava para acabar de consertar o registro da cozinha, que – diferentemente do meu saco – continuava vazando.


Não foi nada fácil essa minha primeira semana longe das crônicas. Prometo que na próxima semana entrarei de férias pra valer e vou deixar os leitores do Congresso em Foco em paz. Seja com futebol, seja ouvindo as Gymnopédies 1,2,3 de Satie. Porque, ora bolas e afinal de contas, eu não sou nenhum ET, e nenhum picareta como esse Tião Faz Tudo, faz coisa nenhuma.

PS. Esse é o email que enviei nesse domingo, 24/5, ao Ombudsman da Folha: É a segunda vez que a Folha comete a mesma grosseria. Sou autor de uma peça chamada "Monólogo da Velha Apresentadora". Da primeira vez, a colunista social Mônica Bergamo cobriu a estréia da peça e omitiu meu nome. Enviei carta para o Painel do Leitor e nada foi registrado. Agora, na Revista da Folha, desse domingo 24/5, o repórter Gustavo Fioratti (provavelmente aluno da escola de Mônica Bergamo) novamente cita minha peça e novamente omite o meu nome. O que está acontecendo? Penso que omitir o crédito de uma obra é mais do que uma grosseria e uma violência contra o autor. É um erro crasso de jornalismo. Vai ficar por isso mesmo, outra vez? Atenciosamente, Marcelo Mirisola.”

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mosca-dragão

Pegoava?

Jundu