Opinião

No estilo dos flanelinhas

Editorial do Estadão
A disputa cada vez mais acirrada de trabalho em mercados saturados está levando algumas corporações profissionais a tomar iniciativas que agridem o bom senso. O exemplo mais recente desse tipo de conduta é a tentativa da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de restringir o direito à defesa gratuita da população pobre. Justificado em nome da "democratização do Judiciário", esse direito foi concebido com o objetivo de permitir o acesso dos segmentos mais desfavorecidos da sociedade aos tribunais.

Pelos critérios vigentes fixados pelo governo estadual, as pessoas com renda familiar mensal de até três salários mínimos (o equivalente a R$ 1.350) podem ser atendidas gratuitamente por um defensor público ou por um advogado pago pelos cofres públicos. Essa medida beneficia 1,8 milhão de pessoas por ano no Estado de São Paulo. A ideia da OAB-SP é reduzir para dois salários mínimos (R$ 900,00) o limite para a concessão da assistência jurídica gratuita. Se a proposta for acolhida, 270 mil pessoas deixarão de ser atendidas gratuitamente e terão de contratar advogados para defender seus interesses.

Ao justificar a redução do teto para o atendimento jurídico gratuito à população pobre, a seccional paulista da OAB alega que, como em vários bairros da região metropolitana e em muitas cidades do interior quase todos os habitantes têm renda familiar inferior a três salários, não sobra trabalho para advogados particulares.

Embora tenha consagrado a defesa gratuita como direito fundamental, a Constituição de 88 não fixou teto salarial para o atendimento gratuito. A única lei que trata do tema, editada há quase 60 anos, limita-se a afirmar que a assistência gratuita será oferecida "a todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogados, sem prejuízo do sustento próprio ou da família". No Estado de São Paulo, o teto de três salários mínimos está em vigor há duas décadas e foi regulamentado em 2008 pelo Conselho Superior da Defensoria Pública.

A seccional paulista da OAB quer que o órgão mude essa resolução. Esse não é o único ponto de atrito entre a corporação e a Defensoria Pública, que foi criada em 2006 pela Lei Complementar Estadual nº 988. Até então, a assistência jurídica gratuita à população pobre era prestada por uma das unidades da Procuradoria-Geral do Estado e por advogados particulares inscritos num convênio firmado pelo governo estadual com a OAB-SP. O convênio continua em vigor até hoje, mas a entidade se queixa de que a tabela de honorários está defasada. O governo alega que, se agora dispõe de um órgão público para executar esse serviço, com 400 profissionais concursados, não faz sentido gastar recursos escassos com os chamados advogados dativos. Segundo o governo, o convênio custa cerca de R$ 270 milhões por ano - um valor que poderia ser melhor aplicado na expansão da Defensoria Pública.

Não é difícil decidir quem está com a razão nesse embate. Pressionada por filiados desempregados, há muito tempo a OAB-SP vem defendendo medidas cartoriais que assegurem trabalho para eles. Em 2007, a entidade se opôs à sanção da lei que permite que divórcios, separações, inventários e partilhas, quando não há conflito entre as partes, sejam formalizados sem a presença de um juiz. O objetivo da lei foi facilitar a vida das partes e desafogar a Justiça. A obrigatoriedade de se pagar por serviços desnecessários sempre foi um dos expedientes a que a OAB recorreu para tentar ampliar o mercado profissional de seus filiados.

Atualmente, há cerca de 520 mil bacharéis exercendo a profissão no País. Como é um número muito alto, não há trabalho para todos. Restringir a assistência jurídica gratuita e burocratizar a vida social e econômica, mediante a exigência da intermediação de advogados em atos corriqueiros, é uma forma de garantir renda a um grande número de bacharéis.
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