Pensata

Tereza batista cansada de guerra

Rui Grilo
Uma visão que acaba meu bom humor e que me dá profunda tristeza é quando vejo nas ruas de São Paulo um homem e , às vezes até uma mulher, carregando uma imensa carroça com materiais para reciclagem. É difícil aceitar que, hoje, no tempo da internet e da comunicação instantânea, o homem se veja substituindo um animal e dependa da sua força física para sobreviver.

Por outro lado, a atitude desse catador revela uma extrema força: daquele que não se abate, que luta para sobreviver, que não se entrega como mão de obra para o tráfico; daquele que, com seu trabalho contribui para que nosso planeta e nossas matérias primas durem mais tempo.

Fico pensando se valeu fazer uma safena, passar por aquele processo para prolongar a vida.

Quando via a imensa cicatriz no peito da minha mãe, achava que jamais teria coragem para passar pela mesma situação.

Havia acabado de voltar da Bolívia quando fui fazer um cateterismo. Lá, conheci São Luiz de Potosi, de onde saía a prata e onde se cunhava a moeda usada na Espanha. Hoje, a cidade é uma das mais pobres e exporta seus moradores para as cidades maiores onde perambulam à procura de meios para sobreviver. São identificados pelo gorro que usam e que é típico da região. Aliás, o gorro ou chapéu é um dos elementos que servem para identificar a região de origem, porque em cada região do país, essa parte da vestimenta tem uma característica.

Quando o exame acabou, o médico disse que teria que ser operado. Era uma sexta feira e havia uma vaga para terça. O médico perguntou se queria deixar para depois porque dali a quinze dias meu filho ia casar. Pensei e disse que, se voltasse para casa, nunca mais poria o pé naquele hospital.

Quando pude levantar e chegar à janela, lá embaixo as quaresmeiras da Rubem Berta estavam floridas. Continuava vivo. Com esses onze anos de lambuja, pude conhecer minhas quatro netas.

No entanto, depois de mais de trinta anos de trabalho, as dores no braço e nos dedos ao levantar o braço para escrever na lousa e, pior ainda, a sensação de que alguns alunos, propositalmente testam a nossa capacidade de resistência, como se enfiassem uma agulha e fossem enterrando para ver até onde agüentaria, tornava a vida insuportável. A revolta cresce por perceber que não podemos confiar nos nossos governantes pois recebemos um documento que afirma uma coisa e a realidade é bem outra; que nossos direitos não são respeitados e que somos vistos apenas como mão de obra barata, que se deve explorar por mais tempo.

Recebo na porta de casa uma funcionária pública; olho a convocação para me defender perante a justiça e pergunto a ela se sabe sobre o que é o processo e ela diz que não. No entanto, ela é uma das pessoas que assinaram uma denúncia contra mim por calúnia e difamação. Era um texto em que me defendia de provocações e no qual não havia o nome de qualquer um dos meus denunciantes.

Perante essa dura realidade, o que me ajuda a viver é a possibilidade de abrir a janela e ver lá embaixo o mar e o sol saindo por trás do morro da Barra Seca; é ver a quantidade de pássaros nas árvores e plantas do quintal e essa imensa floresta que surge aos nossos olhos de qualquer lado que olhemos.

O que me ajuda a viver é encontrar com alunos e saber que estão fazendo faculdade, que estão trabalhando, que casaram, que tem filhos...

Trabalhei muitos anos com alfabetização de crianças e adultos. Era muito comum ver meninas e meninos que iam à escola com piolhos e com nariz escorrendo, e hoje sabem como se apresentar e como combinar a roupa; que sabem como falar e que tem idéias e conhecimentos a transmitir. Que, mesmo pobres, são felizes , tem sonhos e determinação para realizá-los.

O que me ajuda a viver, é ver que em qualquer lugar que você visite no país, há homens e mulheres que se juntam na construção de um mundo melhor.
Rui Grilo
ragrilo@terra.com.br

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