Crônica

Quantos anjos

Luis Fernando Veríssimo no Blog do Noblat
A Igreja medieval tinha muitas razões para condenar o juro. Ele era produto de uma coisa infecunda, o dinheiro, e portanto contra a Natureza. Era um preço dado ao tempo, que é de Deus, e portanto uma apropriação indébita, além de herética. Era fruto de trabalho improdutivo e ímpio, já que dinheiro gerava dinheiro o tempo todo, sem respeitar os dias santos, e era portanto um péssimo exemplo para os fiéis. Mas desconfia-se que a Igreja combatia o juro, acima de tudo, para proteger sua metafísica da metafísica emergente do mercado.

A Igreja acabou cedendo e hoje não excomunga mais ninguém por usura. Com algumas adaptações - como a invenção do Purgatório, uma alternativa suportável ao Inferno para banqueiros e agiotas - aceitou o juro para não ficar de fora do melhor negócio do mundo, que é o do dinheiro produzido por dinheiro. Mas a grande vitória não foi da realidade do dinheiro, foi da sua irrealidade. A metafísica sem Deus do mercado foi mais forte do que a metafísica da fé, o valor arbitrário dado a abstrações financeiras foi muito mais potente do que qualquer abstração religiosa.

O bom da metafísica é que, como é feita no ar, só tem os limites que ela mesma se dá. Aqueles concílios da Igreja em que discutiam coisas como quantos anjos poderiam dançar na ponta de um alfinete são os antecedentes diretos dos conluios do capital financeiro que geraram as pirâmides de papel desligadas de qualquer lastro real, para o dinheiro produzir cada vez mais dinheiro, cada vez mais abstrato. Na questão dos anjos a discussão era entre os que diziam que o número de anjos que cabiam na ponta de um alfinete era limitado e os que diziam que era infinito. As mesmas especulações etéreas devem ter sido feitas sobre até onde iria a farra do capital especulativo. O número de anjos, descobriu-se com a chegada da Crise, era finito.
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