Crônica

A mesma esfiha

Marcelo Mirisola*
Tive uma emergência erótica e fui fazer um descarrego pra lá de Irajá. Da estação Cantagalo, em Copacabana, contando a baldeação que fiz na Estácio/Cidade Nova, mais a carranca de uma mulher caveira que me apavorou desde Coelho Neto até descer em Inhaúma e – descontando o meu cu na mão – até que foi uma viagem rápida de metrô – diante da mudança do ponto de vista e da paisagem, aliás, foi um tiro de Ak 47.

Saltei em Irajá e o plano era pegar o 774 que me levaria ao Jardim América, perto da Via Dutra.

Às duas horas da manhã – depois da confusão – quando subi num táxi clandestino perto da Pça. do Cimento Branco, tive a certeza de que a Zona Sul e o Tom Jobim, Ipanema, e até a mais misturada Copacabana com suas favelas explosivas não passavam de reminiscências de uma doce e fugidia paisagem na memória, nostalgia besta.

Óquei. Desci do 774 um pouco antes de chegar ao Jardim América, ela ligou pro meu celular e achou melhor – medida de segurança – me encontrar no Habib’s de uma avenida da qual não me recordo o nome, mas que levava um jeitão de Presidente Kennedy. Do lado de cá da avenida, esfilhas a 65 centavos, do outro lado um shopping de materiais de construção que tentava mas não conseguia esconder a favela que ostensivamente cafungava em seu cangote.

A mulata estava preocupada. Vejam só. Tinha medo. Nos conhecemos numa sala de bate-papo da Internet. Eu era o “Tiozão”, e ela a “Atoladinha-15 anos”.

Habib’s? Acho melhor chamar aquilo de uma “tentativa de civilização” cercada por conjuntos habitacionais e favelas por todos os lados. Quão inocente – eu pensei, logo que desembarquei do 774 – é a arquitetura que projeta áreas de lazer e praças de alimentação num lugar onde garçons impecavelmente uniformizados servem esfihas de chocolate e ao mesmo tempo são assaltados pelos próprios clientes. Bem feito – continuava pensando: – quem vende esfiha de chocolate tem mesmo é que se fuder.

Isso não foi o pior, logo ao lado, completamente absortas e indiferentes, três crentes bundudas que mal cabiam no próprio mau agouro, espalhavam seus traseiros hediondos nos banquinhos infantis do fast food, e devoravam um Jesus Cristo gordurento de boca aberta. Tava barato, e elas queriam mais.

A garota Atoladinha resolveu que devíamos nos conhecer “mais intimamente”, e de lá do Habib’s logo seguimos para o “Comodoro”. Um motel que fica na marginal da via Dutra, perto do barraco onde a putinha morava com o dublê de padrasto e amante, no supracitado Jardim América.

A zona sul é um presépio. Eu arriscaria dizer que até o Oceano Atlântico e as ondas que quebram no Arpoador em dias de ressaca são de fachada. Nada disso existe. Em 40 minutos de metrô, o Rio deixou de ser a cidade partida do Zuenir Ventura para se transformar numa cidade engolida pelo caos urbano, social e demográfico. Essa tese da “cidade partida” tinha algum fundamento há 30 anos, quando presumíamos a existência de dois lados. O que existe,hoje, é o espelho d’água da Rodrigues de Freitas que ainda me engana, e mais uma argamassa frágil, atoladinha e semi-abandonada à beira da exaustão que não reparte e/ou divide coisa nenhuma e nem tampouco sustenta a si mesma, ou seja, não serve nem para matéria de ficção. Sobretudo depois que você desce na Estácio/Cidade Nova e pega o trem que leva pra Pavuna.

O que se dirá da realidade? Ora, eu digo e repito: a Zona Sul é um presépio. Em São Paulo e no resto do Brasil não é muito diferente, o preço da esfiha é o mesmo.

Bem, agora entro de férias. Já faz um ano e meio que estou aqui no Congresso em Foco, toda semana, avançando bestamente contra os moinhos de vento e a turma da Ivete Sangalo. Eu sabia que ia perder. Por isso não perdi. Mas agora preciso dar um tempo para os leitores e para mim mesmo. Ah, não deixem de conferir meu “Monólogo da Velha Apresentadora” que está em cartaz no teatro do Satyros 1. Lá na Pça. Roosevelt, 214, em São Paulo-SP. Todas as quartas e quintas feiras, às 23h. Com Alberto Guzik e Chico Ribas, direção de Josemir Kowalik. É isso aí. Obrigado pela audiência e até breve.
*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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