Quase!

A visita da velha senhora

Sidney Borges
Depois de caminhar com o cachorro e assistir ao final do treino da fórmula 1 acabei dormindo no sofá. Acordei com alguém batendo à porta. Sobressalto! Estranhei, para chegar à porta é necessário passar pelo portão da rua, o que requer coragem. O astuto Brasil é valente e avança. Para quem não sabe, Brasil é o meu cachorro. Com esse pensamento na cabeça levantei-me e fui atender. Nem sei como dizer, mas ao abrir a porta um calafrio percorreu a minha espinha desde o calcanhar até o queixo, passando por sobre a cabeça e pelo nariz. Bem na minha frente estava a morte brandindo a sinistra foice e cheirando a enxofre. Procurei o cão e este dormia em berço esplêndido. Nunca imaginei ver o Brasil assim. Fiquei estático como a estátua do Duque de Caxias. Uma voz gutural, vinda do fundo dos infernos perguntou:
- Sidney Borges?
Tentei raciocinar rápido, eu precisava responder sem mentir, ninguém engana a morte.
- Em termos, esse é o meu nome artístico, na verdade nem deveria ser, minha bisavó é que era Borges. O pai do meu avô era Afonso Henriques, mas era casado e não assumiu o filho. Está vendo, na verdade eu sou Sidney Afonso Henriques, houve uma certa confusão e a senhora está enganada.
- Mas você foi registrado como Sidney Borges, está aqui na minha tela.
- Sim, isso é verdade, mas saiba que há muitos sidney borges nesse mundo, dezenas, milhares, acho que o senhor, desculpe, a senhora precisa verificar melhor, deve estar havendo algum engano.
- Não há engano, aqui está escrito Sidney Borges de Ubatuba. É você.
- Não pode ser, e os outros sidney borges da cidade? Tenho quase certeza que há mais um ou dois, posso apostar que é um deles o felizardo.
- Não há engano, falei com diversas pessoas e todas foram unânimes em apontar o seu nome.
- Pessoas, pessoas, a senhora confia nas pessoas de Ubatuba? Aqui está cheio de malufistas disfarçados de tucanos. Não acredite nesse povo.
- Muito bem, chega de conversa, vamos partir, estou atrasada, ainda vou buscar dois em São Sebastião e um em Ilhabela.
- Bem, preciso pegar a escova de dentes, entre e sente-se. Volto em um minuto, vou levar o terno azul marinho que combina com a gravata de bolinhas.
Acho que a morte estava cansada, pois aceitou o convite e entrou. Corri para a geladeira, quando fico nervoso como alguma coisa, é instintivo. Por educação ofereci mussarelinhas, gosto de mussarelinhas com orégano e azeite. A morte não respondeu, mas quando peguei o pacote de cabeças de peixe para deixar na lata do lixo mostrou interesse.
- Que aroma delicioso. Que iguaria é essa que você tem nas mãos?
- São cabeças de arenques importados da Turquia meridional. Aceita?
- Vou experimentar.
Enquanto eu pensava nos próximos e derradeiros passos da minha breve vida a morte comeu as cabeças, as tripas e as peles de dois quilos de porquinhos, que torradinhos vão bem com cerveja. Gostou tanto que comeu o saquinho plástico como sobremesa.
- Que refeição maravilhosa Sidney Borges, há muito tempo eu não comia tão bem. Vamos fazer o seguinte, vou primeiro pegar os passageiros do Litoral Norte e na próxima passagem por aqui voltaremos a conversar.
- Não quer esperar um cafezinho? Foi tudo o que consegui balbuciar naquele momento transcendental. Desta vez escapei! Ufa! Acompanhei a morte até a porta e me despedi enquanto ela subia aos céus sempre brandindo a foice sinistra. Ainda deu para ouvir a gargalhada acompanhada da frase:
- Espere por mim Sidney Borges, eu voltarei.
Foi difícil ficar na sala, pairava no ar um cheiro terrível de arroto de cabeças de peixe. Insuportável. Imaginem o que é um arroto da morte. É de morte! O Brasil acordou e cheirou cada cantinho. Depois voltou a dormir.

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