Opinião

O mistério Mangabeira

Há algo de espantoso - mais do que espantoso, de ridículo - nas constantes reviravoltas políticas de Roberto Mangabeira Unger. O seríssimo, vetusto, antipático filósofo de Harvard começou apoiando Brizola; condenava o “obreirismo” de Lula e do PT. Resistiu o quanto pôde sob o comando do velho líder populista, julgando que o comandava. Mais tarde, engajou-se na campanha de Ciro Gomes, para abandoná-la uma semana antes da eleição no primeiro turno. Queria aderir (em sua mentalidade, isso equivale a “iluminar”) à candidatura Lula. Depois, num audacioso artigo na “Folha”, cujo único mérito estava em não ter sido lido por quase ninguém, defendeu o impeachment do presidente –ao qual finalmente se liga, assumindo o cargo ministerial da Secretaria de Ações de Longo Prazo, a “Sealopra”, como alguém a batizou.
A verdadeira palhaçada intelectual desempenhada por esse homem não combina com o “physique du rôle”: o olhar obstinado, o cabelo curtinho, o cenho franzido, o sapato de padre, a voz monocórdica, a frieza do temperamento. Fosse um gordo que gargalha, entenderíamos seu oportunismo. No corpo de um pastor protestante, esse vício de caráter parece um mistério.
Acho que a volubilidade de Mangabeira pode ser compreendida se pensarmos nos velhos militantes do Partidão. Execravam Hitler até o momento em que Stalin assinou um pacto de não-agressão com o líder nazista. Habituavam-se a desdizer o que diziam na véspera, em benefício do proletariado.
Acabo de assistir um documentário contando a vida do compositor Aram Khachaturian. Era dos mais obedientes aos princípios stalinistas. Quando o Grande Comandante e Guia Genial dos Povos condenou uma ópera de Shostakovitch, ele ficou calado. Passou incólume pelos grandes julgamentos de Moscou na década de 30, em que velhos bolcheviques eram levados a confessar crimes (que não haviam cometido) em benefício da linha do partido.
Um belo dia em 1948, Khachaturian perde todas as honrarias que o regime stalinista lhe dedicava. Um amigo seu é nomeado presidente do Sindicato dos Compositores Soviéticos e decreta uma guerra contra os compositores “formalistas” e “inimigos do povo” –a saber, Khatchaturian, Prokofiev, Shostakovitch.
Khatachaturian é levado a fazer uma peregrinação pelo interior da Rússia. Numa aldeia qualquer, a orquestra local toca uma música que ele reconhece: ele próprio a havia composto. Khatchaturian pergunta quem é o autor da composição. Os habitantes do vilarejo respondem: “é uma composição folclórica, o nome de seu autor foi esquecido há séculos”.
Claro que a lógica stalinista era tirar do poder qualquer compositor com um mínimo de talento, mesmo que fosse popularíssimo, e em última análise populista, como Khatchaturian. Ele é o autor da “Dança do Sabre”, que qualquer público de massa adora. Um amigo, em segredo, perguntou-lhe nos anos terríveis que se seguiram à condenação stalinista de 48: “você acha que a ‘Dança do Sabre é formalista?’ Khachaturian respondeu que sim. “Pois bem”, respondeu o amigo, “o povo adora seu formalismo”.
Mangabeira Unger segue um Stalin interior, que o leva a desdizer-se a cada momento. Considera-se um gênio, um Shostakovitch, um Khachaturian, a serviço da causa do povo, desde que encarnada na figura de um ditador enlouquecido. Só que não há ditador enlouquecido: Stálin e Brizola morreram. Ele imagina um à sua imagem e semelhança, e obedece. Ridículos, mea-culpas, incoerências não são nada diante desse Líder tirânico, que ele, ao olhar no espelho, enxerga em si mesmo. (Do Blog do Marcelo Coelho)

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