Coluna do Mirisola
Wilson Bueno não valia R$ 130
“Salvo os escritores que vivem de editais e os que vivem de organizar antologias e/ou de puxar o saco de figurões ilustrados, existem os caras que escrevem aqui e acolá e geralmente são mal remunerados. Ou seja, em vida ganham uma miséria e, depois de mortos, a exposição ao ridículo”
Marcelo Mirisola*
Foi mais do que uma indelicadeza que a imprensa, principalmente os jornais, cometeram contra Wilson Bueno, um segundo assassinato, a meu ver.
Pra que sauna, garoto de programa, rodoviária e cheque sem fundo de 130 reais? Um escritor e ensaísta como ele, que colaborava pro Estadão, merecia, eu acho, mais respeito e, sobretudo, uma remuneração decente. Pois foi um cheque sem fundos que o matou. Segundo a cobertura sórdida dos jornais, o michê foi descontar o cheque pessoalmente, entraram em luta corporal e Bueno levou a pior: virou notícia.
Eis a questão. Não estou querendo dizer que um sujeito merece tratamento ou “notícia” diferente porque é escritor. Muito pelo contrário.
Quero dizer que, salvo os que vivem de editais e os que vivem de organizar antologias e/ou de puxar o saco de figurões ilustrados, existem os caras que escrevem aqui e acolá e geralmente são mal remunerados (embora nada impeça que um sujeito mal remunerado acumule as funções acima citadas: não devemos subestimar a ambição desmedida e a urgência de ser incluído na próxima antologia... que vai puxar o saco, sei lá, do Caetano). Ou seja, em vida ganham uma miséria e, depois de mortos, a exposição ao ridículo – exatamente nos lugares onde trabalharam e emprestaram verniz.
Não era 100% o caso de Wilson Bueno. Um escritor sério que, segundo os jornais, passava o tempo se divertindo com michês e dava cheque sem fundos apenas para se distrair da rotina entediante de ser vizinho do Dalton Trevisan. Imagino que ele devia fazer isso pelo prazer do risco, por esporte. A propósito. Sabiam que tem resenhista que escreve de graça só pelo gozo de ter o nome publicado no jornal? Isso mesmo: só pra mostrar pra mamãe, pra namorada(o) e pros amiguinhos. Eu me pergunto: como é que o leitor pode confiar na indicação de leitura de um cara que escreve de graça? Eu penso que seria melhor pedir uma indicação de leitura pro garçom, e mais um frango assado com batatas fritas e farofa.
Mas eu dizia que tem aqueles que escrevem em jornalões “respeitáveis” e – como Wilson Bueno – são pessimamente remunerados. Nesse caso, diante do contra-cheque, eu acho que a humilhação é bem pior: ganham muito menos do que o garoto de programa que está à espreita na primeira sauna virando à esquerda, ao lado do respectivo caixão. Não, eu não estou sendo cruel. Cruel é o dono de jornal que paga 150, 200 reais por uma resenha.
Só fazer as contas: se o michê faturar dois resenhistas numa noite, ele valerá mais que o dobro que qualquer livro do Ítalo Calvino, capicce?
Daí se depreende que meus coleguinhas ou são carentes profissionais ou são quase mendigos mesmo – não escapam disso, todos vivendo de esmolas e bicos afins: não bastasse, têm aqueles que, além de escrever pra Folha, Estadão e O Globo, ainda sacam filósofos sombrios da cartola para alegrar festinha de madame ninfomaníaca na Casa do Saber, são eles os novos Houdinis que transformam Schopenhauer em coelhinho da Kopenhagen; alguns, para garantir o fornecimento do traficante de estimação, pagar o michê e a escola particular da filha única, alguns se especializaram em dar cambalhotas e equilibrar bolas de sinuca nos focinhos, de modo geral, meus coleguinhas, os escritores brasileiros, fazem qualquer negócio para completar o orçamento, atendem bailes de formatura e festas de debutante. Coisa triste.
As garotas de programa, universitárias e leitoras dos segundos cadernos que dizem eu te amo, cobram mais caro.
Em vez de se fartar das vísceras e da carniça dos colaboradores (vivos ou mortos, tanto faz) os jornais e sites e revistas e os editores em geral – com as exceções raras e de praxe – deviam, eu creio, pagar valores decentes para o colaborador não correr o risco de morrer nas mãos de um michê ou de uma garota de programa (gosto não se discute). Ou – no mínimo – deviam dar liberdade pro sujeito pensar por conta própria.
Sob esses aspectos, posso dizer que sou um milionário. Sim, recebi um adiantamento honestíssimo do Pedro Galé para escrever um romance (devidamente torrado com várias go go girls) e também, da parte do Sylvio Costa, meu editor aqui no Congresso em Foco, sempre tive liberdade plena para escrever o que me desse na telha: nunca tive uma vírgula trocada de lugar. Coisa que não é regra n’outros lugares: não é incomum publicarem seu texto todo retalhado, eles singelamente chamam “censura” de “edição”. Aconteceu comigo na moderninha revista Trip – tesouraram as melhores partes da reportagem que fiz para o Festival de Cinema de Gramado. Também não é incomum encomendarem um texto, e simplesmente não o publicarem porque você elogiou quem deveria criticar e vice-versa.
Tudo manipulado, meus caros. O Estadão encomendou uma resenha do meu livro Proibidão para Fabiano Calixto – além de não publicarem a resenha, não pagaram nada para ele. Será que Calixto elogiou o livro? Um desrespeito desgraçado com o autor. Quem não lhes interessa é limado, e ponto final. Lembram da Mônica Bérgamo? Na coluna dessa senhora todo tipo de escória tem nome, desde Preta Gil, passando por Jesus Luz até chegar em Ivete Sangalo.
Menos este que vos escreve. Ela cobriu a estréia do Monólogo da Velha Apresentadora, e não citou meu nome. Fui reclamar pro ombudsman, pro bispo e pro dono do jornal e ficou por isso mesmo. São tantas sacanagens e manipulações que eu precisaria de mais duas crônicas para inventariar tudo.
Prezo muito pela liberdade que tenho aqui no Congresso em Foco, inclusive, se for o caso, para pedir um aumento. Mas isso é exceção. O escritor brasileiro – insisto - se vende por qualquer ticket-refeição e vive de quatro politicamente falando: perdeu a voz. A consequência é o sumiço dessa espécie “escritor brasileiro” das prateleiras das livrarias. Outro dia tive a manha de entrar numa La Selva de aeroporto e sair de lá – foi a primeira vez que aconteceu isso - com um saco de batatas fritas na mão. Daí que qualquer Chalita, qualquer mago ou picareta do gênero tem mais crédito do que o sujeito que faz ficção no Brasil hoje em dia.
E merecidamente, diga-se de passagem. O escritor brasileiro, além da voz e das pregas da alma, perdeu a credibilidade. Eu, por exemplo, acredito muito mais nas receitas da Ana Maria Braga do que nos livros do Luis Ruffato e do Joca Terron.
Enfim, isso tudo pra dizer que o frouxo literário brasileiro nada mais faz do que enganar a si mesmo e ao leitor quando empenha sua gratidão àqueles que tripudiam de suas misérias, vaidades e carências.
Para encerrar. O michê que matou Wilson Bueno apenas revelou o brilho da imundice que nós, os bobos da corte, publicamos por aí. Ele só fez dizer que merda não reluz ouro, e escancarou a inutilidade e o ridículo do ofício, e o pior, para coroar o vexame da classe, afirmou: “eu não queria matar” - como se dissesse eles já estão mortos: não passam de uma cambada de viados e velhos, fodidos e mal pagos.
Fique em paz, Wilson Bueno.
Pós S: José Saramago deve estar inconformado neste momento, e com razão: descobriu que Deus existe e que Marx era um disfarce do arcanjo Gabriel.
*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.
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“Salvo os escritores que vivem de editais e os que vivem de organizar antologias e/ou de puxar o saco de figurões ilustrados, existem os caras que escrevem aqui e acolá e geralmente são mal remunerados. Ou seja, em vida ganham uma miséria e, depois de mortos, a exposição ao ridículo”
Marcelo Mirisola*
Foi mais do que uma indelicadeza que a imprensa, principalmente os jornais, cometeram contra Wilson Bueno, um segundo assassinato, a meu ver.
Pra que sauna, garoto de programa, rodoviária e cheque sem fundo de 130 reais? Um escritor e ensaísta como ele, que colaborava pro Estadão, merecia, eu acho, mais respeito e, sobretudo, uma remuneração decente. Pois foi um cheque sem fundos que o matou. Segundo a cobertura sórdida dos jornais, o michê foi descontar o cheque pessoalmente, entraram em luta corporal e Bueno levou a pior: virou notícia.
Eis a questão. Não estou querendo dizer que um sujeito merece tratamento ou “notícia” diferente porque é escritor. Muito pelo contrário.
Quero dizer que, salvo os que vivem de editais e os que vivem de organizar antologias e/ou de puxar o saco de figurões ilustrados, existem os caras que escrevem aqui e acolá e geralmente são mal remunerados (embora nada impeça que um sujeito mal remunerado acumule as funções acima citadas: não devemos subestimar a ambição desmedida e a urgência de ser incluído na próxima antologia... que vai puxar o saco, sei lá, do Caetano). Ou seja, em vida ganham uma miséria e, depois de mortos, a exposição ao ridículo – exatamente nos lugares onde trabalharam e emprestaram verniz.
Não era 100% o caso de Wilson Bueno. Um escritor sério que, segundo os jornais, passava o tempo se divertindo com michês e dava cheque sem fundos apenas para se distrair da rotina entediante de ser vizinho do Dalton Trevisan. Imagino que ele devia fazer isso pelo prazer do risco, por esporte. A propósito. Sabiam que tem resenhista que escreve de graça só pelo gozo de ter o nome publicado no jornal? Isso mesmo: só pra mostrar pra mamãe, pra namorada(o) e pros amiguinhos. Eu me pergunto: como é que o leitor pode confiar na indicação de leitura de um cara que escreve de graça? Eu penso que seria melhor pedir uma indicação de leitura pro garçom, e mais um frango assado com batatas fritas e farofa.
Mas eu dizia que tem aqueles que escrevem em jornalões “respeitáveis” e – como Wilson Bueno – são pessimamente remunerados. Nesse caso, diante do contra-cheque, eu acho que a humilhação é bem pior: ganham muito menos do que o garoto de programa que está à espreita na primeira sauna virando à esquerda, ao lado do respectivo caixão. Não, eu não estou sendo cruel. Cruel é o dono de jornal que paga 150, 200 reais por uma resenha.
Só fazer as contas: se o michê faturar dois resenhistas numa noite, ele valerá mais que o dobro que qualquer livro do Ítalo Calvino, capicce?
Daí se depreende que meus coleguinhas ou são carentes profissionais ou são quase mendigos mesmo – não escapam disso, todos vivendo de esmolas e bicos afins: não bastasse, têm aqueles que, além de escrever pra Folha, Estadão e O Globo, ainda sacam filósofos sombrios da cartola para alegrar festinha de madame ninfomaníaca na Casa do Saber, são eles os novos Houdinis que transformam Schopenhauer em coelhinho da Kopenhagen; alguns, para garantir o fornecimento do traficante de estimação, pagar o michê e a escola particular da filha única, alguns se especializaram em dar cambalhotas e equilibrar bolas de sinuca nos focinhos, de modo geral, meus coleguinhas, os escritores brasileiros, fazem qualquer negócio para completar o orçamento, atendem bailes de formatura e festas de debutante. Coisa triste.
As garotas de programa, universitárias e leitoras dos segundos cadernos que dizem eu te amo, cobram mais caro.
Em vez de se fartar das vísceras e da carniça dos colaboradores (vivos ou mortos, tanto faz) os jornais e sites e revistas e os editores em geral – com as exceções raras e de praxe – deviam, eu creio, pagar valores decentes para o colaborador não correr o risco de morrer nas mãos de um michê ou de uma garota de programa (gosto não se discute). Ou – no mínimo – deviam dar liberdade pro sujeito pensar por conta própria.
Sob esses aspectos, posso dizer que sou um milionário. Sim, recebi um adiantamento honestíssimo do Pedro Galé para escrever um romance (devidamente torrado com várias go go girls) e também, da parte do Sylvio Costa, meu editor aqui no Congresso em Foco, sempre tive liberdade plena para escrever o que me desse na telha: nunca tive uma vírgula trocada de lugar. Coisa que não é regra n’outros lugares: não é incomum publicarem seu texto todo retalhado, eles singelamente chamam “censura” de “edição”. Aconteceu comigo na moderninha revista Trip – tesouraram as melhores partes da reportagem que fiz para o Festival de Cinema de Gramado. Também não é incomum encomendarem um texto, e simplesmente não o publicarem porque você elogiou quem deveria criticar e vice-versa.
Tudo manipulado, meus caros. O Estadão encomendou uma resenha do meu livro Proibidão para Fabiano Calixto – além de não publicarem a resenha, não pagaram nada para ele. Será que Calixto elogiou o livro? Um desrespeito desgraçado com o autor. Quem não lhes interessa é limado, e ponto final. Lembram da Mônica Bérgamo? Na coluna dessa senhora todo tipo de escória tem nome, desde Preta Gil, passando por Jesus Luz até chegar em Ivete Sangalo.
Menos este que vos escreve. Ela cobriu a estréia do Monólogo da Velha Apresentadora, e não citou meu nome. Fui reclamar pro ombudsman, pro bispo e pro dono do jornal e ficou por isso mesmo. São tantas sacanagens e manipulações que eu precisaria de mais duas crônicas para inventariar tudo.
Prezo muito pela liberdade que tenho aqui no Congresso em Foco, inclusive, se for o caso, para pedir um aumento. Mas isso é exceção. O escritor brasileiro – insisto - se vende por qualquer ticket-refeição e vive de quatro politicamente falando: perdeu a voz. A consequência é o sumiço dessa espécie “escritor brasileiro” das prateleiras das livrarias. Outro dia tive a manha de entrar numa La Selva de aeroporto e sair de lá – foi a primeira vez que aconteceu isso - com um saco de batatas fritas na mão. Daí que qualquer Chalita, qualquer mago ou picareta do gênero tem mais crédito do que o sujeito que faz ficção no Brasil hoje em dia.
E merecidamente, diga-se de passagem. O escritor brasileiro, além da voz e das pregas da alma, perdeu a credibilidade. Eu, por exemplo, acredito muito mais nas receitas da Ana Maria Braga do que nos livros do Luis Ruffato e do Joca Terron.
Enfim, isso tudo pra dizer que o frouxo literário brasileiro nada mais faz do que enganar a si mesmo e ao leitor quando empenha sua gratidão àqueles que tripudiam de suas misérias, vaidades e carências.
Para encerrar. O michê que matou Wilson Bueno apenas revelou o brilho da imundice que nós, os bobos da corte, publicamos por aí. Ele só fez dizer que merda não reluz ouro, e escancarou a inutilidade e o ridículo do ofício, e o pior, para coroar o vexame da classe, afirmou: “eu não queria matar” - como se dissesse eles já estão mortos: não passam de uma cambada de viados e velhos, fodidos e mal pagos.
Fique em paz, Wilson Bueno.
Pós S: José Saramago deve estar inconformado neste momento, e com razão: descobriu que Deus existe e que Marx era um disfarce do arcanjo Gabriel.
*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.
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