Conto

Rawson, uma viagem

Sidney Borges
Saímos de Rawson ao entardecer, fazia frio, muito frio, o ar estava seco, muito seco. Enquanto eu pensava nos mistérios da ciência meus pés congelavam, apesar do aquecimento, meias de lã e botas forradas.

Estrada deserta, paisagem lunar. À frente Comodoro Rivadávia. Tive sensação de fragilidade quando imaginei o carro em pane. Eu e minha mulher perdidos na noite gelada do deserto. Mala suerte.

Pensamentos negativos atraem coisas ruins, está escrito em algum lugar, Paulo Coelho talvez, não importa, quando virei de costas para pegar chocolate o pneu explodiu. Foi o traseiro esquerdo, canhoto como o Canhoto. Saímos velozes da pista, saltitantes. No terreno plano pedras soltas batiam no carro em sinfonia atonal.

Paramos perto da rodovia, 100 metros talvez. Dos males o menor. Uma valeta e teríamos capotado. O sol começava a tangenciar o horizonte, desci apressado, cheio de energia e adrenalina. Sair dali. Rápido. O pensamento tomou conta, comecei a agir descarregando a bagagem. Ao pegar o estepe um gosto amargo na boca. Vazio. Mordi uma barra de Suchard com nozes. O amargor cedeu.

Munido de cobertor e lanterna com pilhas fracas caminhei em direção à rodovia.

Fiquei parado, quieto, guardando energias e observando a passagem do tempo. A noite começou a descer o manto escuro. Tentei impedir usando poderes mediúnicos. Não funcionou. Não tenho poderes mediúnicos.

Cantei canções em pensamento e algumas em voz alta. Um gavião me sobrevoou em curva de trezentos e sessenta graus de pequena inclinação. Grande demais para o jantar deve ter pensado. Gaviões pensam e sabem contar até cinco.

A noite finalmente escureceu sobre areia e pedras. No horizonte um diminuto segmento circular dourado fazia contraponto ao firmamento escuro. Bela imagem.
De onde eu estava mal dava para ver o carro apoiado no macaco. Usando um cobertor como barraca, sentei-me à beira da estrada e uma canção me veio à mente. Amapola. Comecei a cantarolar.

Amapola, lindísima amapola

Será siempre tu alma
Tuya sola
Yo te quiero amada niña mía
Igual que ama la flor la luz del día
Amapola, lindísima amapola
No seas tan ingrata
Mírame
Amapola, amapola
Cómo puedes tu vivir tan sola

Surgiu do nada, caiu do céu ou emergiu dos sete círculos do inferno, ninguém sabe, como disse Humphrey Boggart mordiscando o cigarro em “O Falcão Maltês”: nobody knows. Não importa, estava lá o caminhão Ford 1946.

O motorista desceu e sem dizer palavra fez sinal para que eu embarcasse. Sem outra opção obedeci, eu tinha certeza de ter visto aquele cara em algum lugar, a barba crescida e os óculos escuros dificultassem saber onde. No carro, minha mulher dormia.

Colocamos a bagagem na carroceria do caminhão, trancamos o carro e voltamos à estrada, os três na cabine apertada do velho Ford, levando na carroceria o estepe vazio, objeto desajeitado. Silêncio total. O motorista esboçou um leve sorriso quando minha mulher perguntou o que eu estava cantando e respondi Amapola.

Uma hora depois paramos para abastecer. Nosso misterioso amigo desceu e sem dizer palavra entrou no edifício anexo ao posto. O estilo arquitetônico lembrava “saloons”, do velho oeste. Depois de esperar por mais de meia hora, com fome e frio entramos também.

O interior poderia quase ser classificado como elegante em contraste com o desleixo externo. Lembrei-me que estávamos no meio do nada e perto de lugar nenhum. Atrás do balcão de madeira e mármore um homem limpava copos. Usava ligas na camisa e sem pressa verificava a transparência dos cristais na luz do balcão. No salão um pequeno palco com uma guitarra sobre uma cadeira deu para imaginar que haveria música ao vivo.

Pedi ao homem água mineral e perguntei se ele sabia de alguém que pudesse me ajudar com o carro, que estava no deserto. Ele disse que providenciaria socorro. Enquanto isso eu deveria sentar-me e apreciar o show.

A configuração era a de um teatro de arena, o público rodeando o palco. Com lotação completa o local abrigaria umas sessenta pessoas. Procuramos uma mesa longe do movimento, embora não houvesse movimento. Um senhor distinto surgiu para nos servir. Minha mulher pediu espaguete ao molho branco, eu preferi bife de chouriço e fritas. Para acompanhar, vinho da casa, excelente.


A temperatura ambiente era agradável e a comida digna do Alfredo de Roma. Pedi ao garçom que desse os parabéns ao pessoal da cozinha.

Depois da sobremesa e do café acendi uma cigarrilha holandesa e notei algumas mesas ocupadas. Pedimos licor. O movimento começava a acontecer, rapazes testavam o som e cuidavam da iluminação. O licor, o vinho, o aroma do tabaco, o conforto do ambiente, que lugar especial, que sensação agradável eu estava sentindo.

Uma hora depois a casa estava lotada. Quando o artista surgiu dava para ouvir a respiração das pessoas. Surpresa! Era o motorista que nos socorrera. De início pensei em um show folclórico de canções patagônicas. Canções de solidão inspiradas naquele fim de mundo. Mais uma vez tive a certeza de já ter visto aquele homem. Aparentava estar na casa dos quarenta, não era magro nem gordo, mas se perdesse alguns quilos não fariam falta.

As luzes se apagaram e o show começou. As primeiras notas soaram da guitarra e uma voz familiar e potente entoou:

Love me tender, love me sweet, never let me go. You have made my life complete, and I love you so.

A platéia delirou. As pessoas gritavam, choravam enquanto a canção fluía. Não havia caixas de som, as ondas sonoras brotavam de todos os lugares, das paredes, do chão, do teto.

Minha mulher me olhou com cara de espanto. Antes que eu dissesse alguma coisa percebi o engodo. Aquele cara não estava cantando, era dublagem. Bem feita, a melhor que eu já vira, mas não passava de dublagem, a voz pertencia ao inesquecível Elvis Presley. As canções que se seguiram confirmaram minhas suspeitas:

A Big Hunk o' Love
A Boy Like Me, A Girl Like You
A Cane and a High Starched Collar
Adam and Evil
A Dog's Life
A Fool Such as I
After Loving You
A House that has Everything
A Hundred Years from Now
Ain't That Loving You Baby
A Little Bit Of Green


O show terminou com a triste Danny Boy que emocionou a todos, lágrimas rolaram fartamente naquele salão longínquo.

Chamei o garçon e pedi a conta e uma dose cawboy de Black and White. Sempre tomo uísque quando as forças começam a diminuir. Paguei com cartão, o jantar não foi barato, quase 300 dólares, US$ 279, 50 para ser mais preciso. Mandei acrescentar 10% de serviço. O garçon sorriu amistoso. Saímos na noite fria.

Surpresa, o Cherokee estava estacionado na porta com o pneu consertado e a chave no contato.

Nem sinal do caminhão e do motorista. Liguei o carro e outra surpresa, o tanque estava cheio. Decididamente aquela noite não foi uma noite comum. Procurei um CD no porta luvas, encontrei um e coloquei no aparelho sem ver do que se tratava. Enquanto colocava as coordenadas daquele ponto no GPS a voz de Elvis quebrou o silêncio. As músicas do show estavam no CD. Entendi como gentileza da casa. Continuamos a viagem.e duas horas depois um motel ao lado de um vilarejo de vinte casas tornou-se nosso abrigo por uma noite.

Na manhã seguinte seguimos cedo, eu tinha negócios em São Paulo. Ao chegarmoa a Comodoro Rivadávia deixei o carro na locadora e meia hora depois estava a bordo do Boeing 737 da Aerolíneas Argentinas voando para Buenos Aires. Minha mulher tinha afazeres na Universidade. Viajou dois dias depois.


Aquela noite mágica ficou presente, sempre que a história era contada despertava interesse. Depois de alguns meses a cansou, paramos de tocar no assunto, mas os amigos insistiam, alguns até planejavam ir à Patagonia saborear as delícias do cardápio do “Alfredo” austral. No entanto, algumas perguntas ficaram sem resposta. A fatura do cartão nunca foi cobrada.

Certa vez, em uma festa, contei o caso a um grupo de colegas de trabalho. Um deles, cético e nada simpático, duvidou, disse que eu tinha inventado a história e pediu para ver a fatura do cartão. O cara tinha espírito de sherlock, exatamente a fatura não cobrada. Fiquei sem palavras, dizer o quê? Ele também pediu as coordenadas do posto-saloon. Eu as havia copiado na contracapa de uma velha agenda.

Alguns meses se passaram e uma noite, na casa de um primo, tive a desagradável surpresa de encontrar o ex-colega que pedira a fatura. Eu tinha enviado a ele as coordenadas, depois nunca mais o vi. Mudara de emprego e de cidade.

Depois de termos pedido por telefone a tradicional pizza ele disse que nas coordenadas que eu enviara não havia nada além de deserto. Como você sabe? Perguntei. Ele respondeu que havia sobrevoado o local duas vezes. Indo e voltando de Punta Arenas. Voou baixo, em avião pequeno. Não havia chance de erro. Era um ponto no deserto. Sem nada ao redor num raio de quilômetros.

Duas hipóteses foram por ele sugeridas: eu tinha mentido ou tinha talento para inventar histórias. Assim terminou a noite. Passei por mentiroso, a hipótese do talento fora colocada com sarcasmo.

As semanas se arrastaram até a parada de outubro, quando professores descansam uma semana. Aproveitei a folga e fui tirar as coisas a limpo. Viajei em uma segunda-feira cedo. Depois de muita turbulência o 737 pousou em Comodoro Rivadávia, debaixo de um dilúvio para Noé nenhum botar defeito.

Passava das 21h da noite mais escura e lúgubre que eu já vira. Na manhã seguinte, a bordo do mesmo Cherokee, acho que era o único da locadora, desta vez com os pneus devidamente checados, estepe inclusive, lá estava eu na estrada, sem companhia, minha mulher preferiu ficar na praia.

Parei apenas no vilarejo onde tínhamos dormido na noite do show. Comprei água mineral e salgadinhos. Perguntei ao dono da venda que pareceu ter me reconhecido se ele sabia de um caminhão Ford 1946 dirigido por um barbudo. Ele fez sinal com a cabeça que não, mas quando eu ia saindo deu de ombros como se a resposta fosse talvez. Peguei um cortador de unhas Trim, paguei e tornei a perguntar se o caminhão costumava passar por lá e onde eu poderia encontrar o motorista.

Ele me disse que nunca vira o caminhão, mas sabia que existia e que as pessoas comentavam que aparecia de tempos em tempos. Também diziam que o motorista era mudo. Ninguém sabe onde mora, continuou, e nem o seu nome.

Parece que o senhor Ledesma, da pedreira, já conversou com ele. Perguntei onde era a pedreira.

O endereço foi copiado em papel de embrulho. O original estava na gaveta da caixa registradora, num cartão de visitas surrado e engordurado. O cartão foi guardado com a mesma calma com que fora retirado.

Com o lápis acomodado na orelha o dono da venda tragou profundamente o cigarro de palha, cruzou os braços fortes e ficou me olhando enquanto mastigava um palito no canto direito da boca. Estático. Sem expressão.

Não havia como errar, a pedreira era perto, bastou seguir à esquerda em uma bifurcação na estrada principal. Depois andar quinze quilômetros. Estrada de cascalho, poeirenta. Parei na porta de uma casa de madeira que me pareceu o escritório. Ao longe caminhões trafegavam, imaginei que aquela pedreira supria as obras da indústria petrolífera e da construção civil de Comodoro Rivadávia. Me pareceu próspera. Enquanto eu estacionava também o fazia um carro branco. Era o senhor Ledesma.

Contei a ele o que acabei de escrever. Era um homem simpático, bom ouvinte, disse que tinha vivido experiência semelhante. Seu carro quebrou e ele foi socorrido pelo mesmo caminhão Ford 46, exatamente como tinha acontecido comigo. Quando partiram passou um conhecido e ele mudou de veículo.

Argumentei que na região diziam que ele tinha conversado com o motorista.

Não foi exatamente uma conversa, ele apenas sorriu quando eu quebrei o silência de nossa breve viagem e cantei alguns versos de Amapola. Depois nunca mais o vi.

O local das coordenadas não era distante, convidei meu interlocutor a ir lá comigo. Ele concordou. Viajamos ao som de Elvis, o mesmo CD do dia da estranha experiência.

Foi difícil sair do ar condicionado, estava quente, muito quente. No ponto marcado pelas coordenadas só havia areia e pedras. Um pequeno lagarto acomodou-se na sombra do carro não se importando com a presença humana.

Caminhamos alguns metros e eu me convenci da inutilidade da busca, não havia nada a ser encontrado. Tentei concatenar os pensamentos, senti a adrenalina circulando, o coração batia forte ressoando nos ouvidos. O que teria acontecido? Alucinação? Fenômeno paranormal? Confluência de dimensões? Loucura?

De longe vi o Sr. Ledesma acenando, o suor turvara meus olhos. O ar quente subia e ondulava a paisagem distorcendo tudo como os espelhos do Parque Shangai, fazendo o Sr. Ledesma parecer um ectoplasma, como imagino devam ser ectoplasmas.

Ele havia tropeçado na alça de uma pasta enterrada na areia. Pasta antiga, parecia mala de retirante. Dentro havia papéis velhos e recortes de jornal. Em um dos recortes, datado de 8 de janeiro de 1995, havia uma matéria sobre o aniversário de 60 anos de Elvis Presley.

Ilustrando a matéria a foto de um show de 1965, acontecido em East Tupelo, Mississippi. Em uma mesa de fundo reconheci a mim e minha mulher. Estávamos sorrindo depois de um jantar inesquecível.

O Sr. Ledesma perguntou se eu queria ficar com a pasta. Respondi que não enquanto rasgava o recorte. Ninguém iria acreditar. Não tenho mais paciência para explicar...

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