Coluna do Mirisola

Jesus mal acompanhado (parte 2)

"O diabo não é mais aquele que traz o épico e o deserto consigo, ele carrega uma pastinha 007 e corta o cabelo à escovinha. Brega, chapeludo, sertanejo"

Marcelo Mirisola*
Vou ter de voltar ao assunto da crônica retrasada. Na verdade, não só da retrasada. Já tratei desse problema aqui mesmo: leiam “Sua alminha já tem dono” e “Porco Dio!”. Sinceramente? Não aguento mais repetir a mesma coisa, de tantas e tão óbvias maneiras diferentes.Tô me sentindo ridículo, derrotado e impotente. Peço mais um tanto de paciência aos leitores do Congresso em Foco. Mas acho que foi pouco o que eu disse sobre o fato de Jesus Cristo ter sempre andado pessimamente acompanhado.

A mentira (eu achava...) precisava de uma certa dose de bom humor e desapego, uma ajuda do acaso e ginástica intelectual sofisticadíssima para ser eficiente. Eu – ingênuo, besta - cheguei a acreditar que somente um virtuose poderia aplicar um KO e sair bonito na história. Engano.

Nisso que dá ler Machado de Assis. Em Memorial de Aires, o velho Conselheiro Aires diz: “(...) o acaso também é um corregedor de mentiras. Um homem que começa mentindo disfarçada ou descaradamente acaba muitas vezes exato e sincero”.

Machado vivia numa época refinada. E notem que o pano de fundo de Memorial de Aires era o Brasil escravocrata. Uma época cujos homens peitavam o tempo em que viviam. Na falta da tecnologia, eles eram a ferramenta de si mesmos. Hoje, devido aos “avanços tecnológicos”, acontece paradoxalmente o efeito oposto. Nos tempos do Conselheiro Aires, o sujeito que tivesse a necessidade de se comunicar com o grande público, não tinha opção diferente de ser brilhante e genial, tanto faz se fosse um mentiroso rematado ou um Machado de Assis. Mme. Blavatsky e Bernard Shaw são frutos dessa época.

Pois bem. Fiz umas contas, e cheguei a uma conclusão. Cinco mil anos. Foi o tempo que demoramos, desde a primeira azeitona colhida pelo Sumérios até a primeira fralda descartável ir de encontro às geleiras do Ártico, para bater no peito e dizer: “uga, uga, somos diferentes dos animais”. Acontece que, de trinta anos para cá, desaprendemos quase tudo. Para ser sucinto, posso dizer que jogamos na lata do lixo desde Galileu até Raul Seixas. Desaprendemos – inclusive - a mentir com elegância. O élan foi pro saco. O encanto, a arte de pensar e marcar presença (até a ilusão de que éramos diferentes dos animais...) isso tudo e mais as figurinhas que decoram a cúpula da Capela Sistina, nosotros trocamos por intermináveis horas na frente da televisão. A brecha foi dada, e agora, finalmente, conseguimos alcançar o limite da imbecilização coletiva. Vou tentar ser mais claro. Um treco chamado “Deus” e um exército de estelionatários ocuparam essa brecha. A mentira é contada aos guinchos. O diabo não é mais aquele que traz o épico e o deserto consigo, ele carrega uma pastinha 007 e corta o cabelo à escovinha. Brega, chapeludo, sertanejo. O que me deixa irritado é a retórica infantil. O tatibitate teológico. Se é que podemos chamar as batidas de carteira desses estelionatários de retórica. Tudo é muito precário e muito eficiente.

Ontem à noite, dessa vez assistindo ao “missionário” R.R. Soares (agora virei freguês desses programas) tive a convicção de que – depois de Primo Levi ter escrito “É isto um Homem?” e a despeito do refinamento do Conselheiro Aires – chegamos ao estágio final desse processo truculento chamado civilização.

A meu ver, temos apenas uma opção e um destino: ou nos re-alfabetizados para seguir em frente (acho difícil...) ou seguiremos inexoravelmente rumo ao pasto da fazendinha do bispo Macedo. O destino é o capim.

Porque é nada mais nada menos que o capim o que anunciam esses pastores do diabo. Se esse missionário R.R Soares, auto-intitulado missionário de Jesus, não for a encarnação agrícola de Belzebu, não sei mais o que ele poderia ser. O sujeito é de uma simplicidade e de uma truculência que – para dizer o mínimo - metem medo. Esqueçam as nuances do Machadão. As mentiras dessa gente, repito, são tristes, rasteiras – já disse na crônica retrasada – mentiras constrangedoras.

R.R Soares faz o tipo bonzinho disciplinador, “prega” com a maior serenidade: “comprem o pacote das nossas vinte e tantas emissoras e não vejam as outras, aquelas que vocês sabem que não devem assistir. Liguem para o número tal, é facinho. Tá aqui o boleto, o Senhor Jesus agradece”.

“Senhor Jesus” é a cabeça do meu caralho, antes que eu me esqueça.

Aí o sacana do missionário “interpreta” uma parábola qualquer da bíblia, faz a associação com uma imagem caseira e brega, e diz pros incautos, entre outras grosserias, que Deus não é contra os homossexuais, mas contra a prática homossexual. Para corrigir “o desvio” - ele deixa bem claro - basta o otário parar de dar a bunda e comprar o pacotão da TV evangélica.

Tem pacote pra macumbeiro, pra corno, pra pinguço, pra paralítico, menos pra gente feia. Os jagunços, digo fiéis, entram em convulsão moral, espiritual, anal. Numa espécie de êxtase das Casas Bahia, o espetáculo é de puro horror e cafonice. Muito triste ver aquela gente travada e sofrida oferecendo-se à “glorificação do “Senhor Jesus”. Ao contrário de uma celebração no candomblé, onde o humano e o sobrenatural se entrelaçam numa mistura de lubricidade e alegria, a impressão que tenho é a de que, no êxtase neo-evangélico, falta sobretudo beleza para entregar-se a qualquer coisa.

Eles não ascendem, mas se desfiguram. Nunca vi gente pra gostar de pagar mico assim. Sobram apenas as faturas do boleto bancário. Aquelas tias barangas de cabelos compridos e ensebados, vestidas com as burkas que compraram na C&A, oferecem suas almas ensebadas e estupradas pelo pastor do capeta para um acuado “Senhor Jesus”, ele mesmo, há dois mil anos crucificado para salvar os homens e agora refém da histeria horripilante do povo de Deus. Falta calcinha vermelha a essa gente, falta tesão.

Que Jesus é que vai se animar com o strip espiritual de uma baranga daquelas?

Nem vou falar nos depoimentos dos irmãos e irmãos: “a novela da vida real”. Tudo muito constrangedor e anti-cinematográfico. Os roteiristas do missionário seguem a cartilha do capim a que me referi no começo dessa crônica. Como se Nelson Rodrigues e Fellini jamais tivessem existido. Pobre Jesus. Que depois de ter se fodido de verde e amarelo aqui nessa terra de iniquidade e filhadaputagem, ainda – vejam só - tem de aguentar a franga liberada dessas jagunças e dos seus respectivos esposos felizes da vida por terem se curado dos vícios e entregado suas alminhas apagadas a Ele, o eterno mal acompanhado.

Imagino que deva existir um lixão ou bota-fora no outro mundo, que é lugar para onde o “Senhor Jesus” encaminha a alma dessa gente brochante e ameaçadora. E dá lhe pau nos Santos e Orixás, nos macumbeiros, nos homossexuais, nas outras emissoras e nos jornais concorrentes, “aqueles que vocês não devem nem chegar perto”.

Sim, porque temos as nossas televisões, o nosso jornal, nossos milagres e nossos advogados, nossos vereadores, nossos prefeitos, nossos governadores, nossos deputados, nossos senadores e dentro de pouco tempo teremos nosso presidente. O nome deles é legião.

Dá medo, muito medo.

Acorda, Luis Mott! Já que o Ministério Público não vai fazer nada mesmo, você poderia entrar com uma ação qualquer contra esse povo do pé quebrado, a coisa vai ficar feia pro lado de quem dá a bunda. Tô avisando. Aliás, vai ficar feia pra todo mundo que se negar a aceitar o “Senhor Jesus”, esse rebotalho fascista filho das trevas e da feiúra. E chega, não aguento mais falar nisso, a minha parte eu já fiz. Amém.

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


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