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Um cadáver incômodo

Sérgio Rodrigues resgata a história de Elza, a garota executada pelo PCB após o fracasso da Intentona Comunista

Postado por Luciano Trigo (Clique aqui e leia o original)
Elvira Cupelo Colônio, codinome Elza Fernandes, tinha 16 anos quando foi presa, em janeiro de 1936, com seu companheiro, o dirigente do PCB Antonio Maciel Bonfim, o “Miranda”, na onda repressora que o Governo Vargas desencadeou após o fracasso da Intentona Comunista.

Libertada poucos dias depois, foi barbaramente assassinada: estrangulada, teve seu corpo mutilado e enterrado no quintal de uma casa no subúrbio do Rio. Cumpria-se assim a sentença do “tribunal vermelho” formado para julgá-la por uma suposta delação.

Os poucos historiadores que abordaram o episódio garantem que a ordem para a execução partiu de Luis Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, num bilhete escrito de próprio punho. Por ironia da História, poucos anos mais tarde a companheira de prestes, Olga Benário, seria vítima de outro crime hediondo, este bem mais conhecido e divulgado.

Ao decidir desenterrar o cadáver de Elvira em seu novo livro, Elza, a Garota (Nova Fronteira, 240 pgs.R$29,90) o jornalista e escritor Sérgio Rodrigues sabia que estava mexendo num vespeiro - e que correria o risco de desagradar boa parte da esquerda.

Misturando ficção e pesquisa histórica, Sérgio escreveu uma obra que vai muito além da denúncia política. Mesmo assim, uma mensagem fica clara para os leitores: a estupidez ignora ideologias.

G1: Houve um pacto de silêncio para abafar a história de Elvira? A que você atribui o quase-desconhecimento desse epidódio? Como essas coisas funcionam no Brasil? E e o que você, pessoalmente, acha disso?

SÉRGIO RODRIGUES: Entender esse desconhecimento foi minha maior motivação ao escrever o romance. O assassinato de Elza Fernandes rendeu tantas manchetes na época que sondar o silêncio que desabou mais tarde sobre ele não é uma tarefa simples. Por um lado, é compreensível que a história fosse um incômodo para a esquerda, que não tinha interesse em contá-la. Mas também a direita contribuiu para apagar o quadro-negro, na medida em que os discursos que ela alimentou sobre a Intentona eram tão pouco confiáveis - a lenda de que os revoltosos assassinaram a facadas companheiros de farda que dormiam, por exemplo - que acabaram jogando o pacote inteiro no descrédito. E a história é sensacional. Mesmo que a gente deixasse de lado por um momento o que existe de importante e necessário para a cultura de um país na atividade de arejar a memória, de não deixar esqueletos no armário, mesmo assim restaria uma história apaixonante de amor, traição e idealismo, contra um pano de fundo histórico dos mais fascinantes e terríveis que é o período imediatamente anterior à Segunda Guerra. Não fazia o menor sentido isso continuar no esquecimento.

G1: Que comparação é possível fazer entre Olga e Elza? As duas mortes se equivalem? Os dois lados estavam errados ou, ao contrário, é preciso explicitar suas diferenças, evitar que os crimes cometidos, por assim dizer, se anulem?

SÉRGIO: Acho que seria revoltante tentar estabelecer qualquer tipo de equivalência entre dois assassinatos. Qual seria a base moral para julgar algo assim? Existe sim uma simetria curiosa entre os dois personagens, agravada até, curiosamente, pelo fato de os nomes soarem semelhantes. É claro que os dois lados agiram de forma criminosa com essas mulheres, cada um a seu modo. No limite, num arroubo de historicização da coisa, pode-se dizer que Olga foi vítima de Hitler e Elza, de Stalin. Daí a imaginar que uma morte anule a outra ou que uma delas, ao contrário, seja mais grave e importante, vai uma enorme distância. Fugi tanto dessa comparação no livro que a Olga acabou ganhando apenas duas breves menções.

G1: Fale sobre a sua pesquisa. Recorreu a que fontes? O que descobriu de novo a respeito da execução de Elvira? Ainda existem dúvidas sobre o que aconteceu?

SÉRGIO: Foram seis meses intensivos de pesquisa, com a ajuda de uma pesquisadora profissional, a Cristina Zarur. Além da bibliografia que aparece no livro e da consulta aos autos do processo do Tribunal de Segurança Nacional que em 1940 condenou Prestes e os outros companheiros pelo assassinato de Elvira, as principais minas de documentos foram a Biblioteca Nacional, o Arquivo Edgard Leuenroth, a Unicamp, e a Fundação Getúlio Vargas. Houve também as entrevistas que eu fiz, e que foram incorporadas ao romance. O que me parece haver de mais novo é o avanço que o livro faz na questão da suposta traição do Miranda ao PCB. A carta que ele teria escrito a Filinto Müller, chefe de polícia que estava à frente da repressão aos comunistas, é um documento que, até onde sei, jamais tinha sido publicado em livro. Quanto aos indícios de que ela pode ter sido forjada, nem se fala.

G1: Por que acrescentar a parte ficcional à história, por si só tão dramática? Qual era seu objetivo?

SÉRGIO: Muito cedo na pesquisa eu descobri que tinha que fazer um romance. Não só porque a ficção me permitiria dar uma vida e um pulso a personagens que a não-ficção, por definição, tende a esfriar. A razão principal era que eu precisava de liberdade para trazer a história até nossos dias, falar menos do episódio em si e mais de uma longa história que viesse a dar, no fim das contas, no Brasil de hoje, um produto daquele. Não duvido que fosse possível fazer isso num longo ensaio, mas ele consumiria 1.200 páginas e ficaria ilegível. Um romance de 240 páginas pareceu uma idéia melhor.

G1: Você não teme que seu livro seja “apropriado” pela direita? Acredita que haverá reações negativas por parte da esquerda? Isso causa preocupação?

SÉRGIO: Qualquer pessoa que leia o livro vai perceber logo nas primeiras páginas que ele não pode ser apropriado pela direita. A direita brasileira sai muito mal disso tudo. Isso não quer dizer que a esquerda saia bem. Acredito mesmo que essas categorias, pelo menos em termos tão absolutos, estejam virando relíquias da Guerra Fria, o papo hoje é um pouco diferente. Mas, mesmo quando elas faziam todo o sentido, julgar uma obra de literatura por esses parâmetros sempre foi má idéia. E espero que o Elza seja julgado como literatura, porque é o que ele é. Dito isso, claro que me preocupa um pouco o uso político que possam tentar fazer do livro. Principalmente porque muita gente, claro, não vai se dar ao trabalho de ler nem a orelha do Zuenir Ventura antes de formar uma opinião acachapante. A irresponsabilidade intelectual é grande, e as paixões que o tema desperta são intensas. Mas considerar meu romance um livro “de direita” é como dizer que Memórias póstumas de Brás Cubas é um livro espírita, isto é, coisa de gente muito desinformada. De todo modo, seria ingenuidade mexer num vespeiro desse tamanho e esperar unanimidade. A quem se sentir incomodado só de ouvir falar do livro, faço um único pedido: leia-o primeiro.

G1: Mas esse epísódio era lembrado basicamente por defensores ardorosos do regime militar pós-64, como o general Brilhante Ustra, no seu site A verdade sufocada, e o general Agnaldo Del Nero Augsto, no livro A grande mentira, que denunciam diversas outras vítimas de justiçamentos comunistas, na época…

SÉRGIO: Não é verdade que o caso Elza só fosse lembrado até hoje por torturadores e/ou defensores da ditadura militar. Ele está contado em livros de historiadores sérios - e de esquerda - como Jacob Gorender e Marly Vianna. Aparece com riqueza de detalhes no bom Camaradas, de William Waack, e é mencionado de passagem até no Olga. Tratar desse assunto de forma adulta e à luz do dia me parece interessante inclusive, e talvez até principalmente, para a esquerda. Os sites a que você se refere, aliás, são citados por um personagem do meu livro como “sitezinhos horríveis” produzidos pela “extrema direita mais hidrófoba”. Repudio com veemência a companhia dessa gente.

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