Literatura

Por que você escreve?

Sérgio Rodrigues (Clique aqui e leia na fonte)
Ele perguntou a ela por que ela escrevia e ela respondeu que escrevia porque tinha vontade, e ele falou, muita gente tem vontade, vontade não basta, e ela disse mas então você está me perguntando como eu consigo escrever, é isso?, e ele ficou em dúvida e ela, eu achei que você tinha perguntado por que eu escrevo e não como eu faço para escrever o que eu escrevo, aí ele ficou um tempo em silêncio e depois riu e disse tá certo, touché, então ela olhou para baixo e notou que ele estava se assanhando outra vez, ah, a juventude, tocou nele e disse, como se fosse um eco na caverna, touché, e pronto, começaram tudo de novo, e só bem mais tarde, de madrugada, o apartamento já quase sem provisões, quando estavam bebendo o vinho velho que ela tinha separado para cozinhar e sorvendo por um buraco na lata o leite condensado encontrado por milagre no fundo da despensa, aquela mistura sensacional de caldo ultradoce e vinho avinagrado, mas um bom vinho avinagrado, chileno, só então ela disse, com os olhos bem encaixados nos dele, eu escrevo porque isso faz homens bonitos e gostosos que nem você gostarem de mim, quererem me comer, aí cruzou os olhos, língua roxa, e falou me come, e ele até que tentou, tentou bastante, mas tinha acabado a pilha.

* * *

O repórter, um garoto espigado, um Clark Kent mais moreno, quase mulato, óculos redondos, beiços fartos, perguntou de gravador estendido por que ele escrevia. Era a mais tolinha das perguntas do manual, mas o velho escritor famoso olhou para o garoto em silêncio, e continuou olhando até ele desviar os olhos e começar a suar no buço. Então pegou o gravador da mão dele, desligou-o e, após devolvê-lo, disse:

― Eu escrevo porque tenho um monstro dentro de mim que, se eu não escrever, vai pular em cima de todos os meninos tesudos feito você que cruzarem o meu caminho, e aí já viu. Para acalmar a fera só tem duas coisas: escribir y joder, ou melhor, ser jodido.

E o jovem repórter ficou respirando forte e olhando para o escritor um tempão. Aí guardou o gravador na bolsa e disse:

― Vamos?

* * *

Em Parati:

― Escrevo porque sou testemunha. Escrevo para dar voz a quem não tem voz. Escrevo porque meu país está aprendendo a ler ― respondeu um baixinho grisalho, provavelmente comunista.

― Escrevo porque não sei tocar saxofone ― disse o quarentão barrigudo que estava ficando careca, mas ainda tentava disfarçar. Provavelmente brocha.

― Não tenho the slightest fucking idea! ― gritou a jovem paulistana de roupa fashion e cabelos picotados. Provavelmente idiota.

― Engraçado, nunca ninguém me fez essa pergunta ― rosnou o gringo entediado. ― Acho que escrevo porque sou muito bom nisso. ― Certamente babaca.

― Escrevo porque escrevo porque escrevo porque escrevo ― mas isso ela já nem lembra quem falou, porque a essa altura desistiu de impressionar seu novo namorado intelectual e partiu sozinha para Trindade numa traineira que tinha o seu nome, Anna O., até a inicial era a mesma, e por dois ou três meses não teve vontade de escrever nem bilhetinho para colar na geladeira.

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