Escritor de Província

Fantasma

Sidney Borges
Em noite recente tive um pesadelo. Sonhei que estava flutuando dentro de uma nuvem densa, sem enxergar nada. Quando o nevoeiro se dissipou o susto foi grande. Não sei por quais meandros cósmicos enveredei, mas eu era o Fantasma e estava sentado no trono da caverna, em Bengala. Comecei a suar frio apesar da indecente roupa colante de malha. Que coisa brega, malha roxa! Por que eu disse brega? Parece que o termo nasceu na Bahia. De uma placa de rua enferrujada. O nome Manuel da Nóbrega foi sendo apagado até restar apenas brega. A rua ficava na zona do meretrício e vai daí...

Ao meu lado, isto é ao lado do trono postava-se impávido Guran, baixinho. Estava vestido de criado indiano e me ofereceu chá. O Fantasma gosta de chá indiano. Só tinha inglês, tomei assim mesmo, não sem manifestar certo desapontamento. Felizmente os bolinhos de chuva estavam no ponto, torradinhos por fora e firmes por dentro.
No princípio não me senti bem dentro da malha roxa, mas depois de relutar algum tempo acabei incorporando o personagem. O escritor de província quase inédito foi desaparecendo de minha mente até se tornar uma lembrança distante, mera quimera.
Devo ressaltar que foi um sonho realista, tão realista que não sei se foi sonho mesmo ou se sou de fato o Fantasma. Para os leitores que não estão familiarizados com a vida de um herói dos quadrinhos, faço algumas revelações. Entre uma aventura e outra é um tédio só, não há nada a fazer.
O Fantasma passa o tempo tirando pó do tesouro, polindo a prataria, cozinhando panquecas, lendo Seleções e jogando “Banco Imobiliário” com os pigmeus. De tempos em tempos vai a Nova Iorque, de capa e óculos escuros, ver a noiva Diana Palmer. Estava exatamente na hora de viajar. Vive-se e aprende-se. Até dormindo, como nos cursos de inglês de travesseiro. Descobri que se há uma coisa que o Fantasma teme, mais até do que os piratas Singh, é encontrar Diana ao lado de um Ricardão. Malas feitas, tive a primeira experiência heróica ao embarcar em um Clipper da Pan American, em Bombaim, na Índia. Antes da partida do avião, marcada para às 21h00 GMT, tratei de despachar meus amigos Herói e Capeto num cargueiro javanês. Não foi fácil.
As leis do Porto de Bombaim mudaram na primavera de 1933 e o meu sonho se deu no outono de 1934. O oficial da aduana me explicou que não havia restrições aos lobos. Prontamente uma confortável jaula foi providenciada, com comida e água fresca. Capeto só viaja de primeira classe, sendo coadjuvante da maior importância exige tratamento de estrela. Na vez de Herói a coisa encrespou. O distinto oficial queria o Bill off Sale do eqüino, coisa impossível de se obter. Herói descende de uma linhagem de Bengala. Criou-se um impasse, o navio quase parte sem o cavalo. Deixei-o no cais com alfafa e água e saí para esfriar a cabeça. Andei pelas docas sujas e esfumaçadas. Marinheiros chineses distribuíam panfletos da Internacional Socialista em meio a prostitutas, rufiões e carrinhos de mercadorias e riquxás de tração humana. A tarde caia rapidamente, tornando objetos tridimensionais em silhuetas. Foi quando encontrei Heinz Miller, tipógrafo comunista e agitador profissional. Miller é agente da Patrulha da Selva, eu mesmo o infiltrei no Comintern. Falei do problema. O sinal de cabeça foi claro, siga-me. Entramos numa rua estreita, ladeada de casas de madeira de dois andares. O cheiro de fritura barata adensava o ar fazendo com que a fumaça das chaminés subisse rapidamente. Depois de uma centena de metros passamos por um portal. O corredor longo, estreito, úmido e mofado nos introduziu em um amplo armazém. Estávamos na gráfica que imprimia propaganda comunista para a Índia e a Indochina. Heinz trocou rápidas palavras com um malaio suarento e em poucos minutos eu tinha o Bill off Sale em mãos. Saímos sem chamar atenção e nos despedimos em frente a uma casa de chá. O Fantasma vê tudo, notei através da cortina de bambu dois olhos negros me fitando. Pareciam duas enormes jabuticabas. Depois de embarcar Herói tomei um táxi. Faltando cinco minutos para a partida do Clipper cheguei ao cais. Ufa! Ansioso para embarcar. Ansioso para ver Diana. Tão ansioso que não percebi que estava sendo fotografado. O Fantasma de vez em quando se humaniza.

Continua no próximo domingo

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