Despedida

Aos pilotos do TAM 3054

Quaisquer que sejam as conclusões da investigação em curso do recente e trágico acidente da TAM, estou convicto de que Kleyber e Stephanini não o desejavam; que envidaram seus melhores esforços no sentido de evitá-lo; que esperavam entregar seus passageiros sãos e salvos a seus familiares e amigos. Descansem em paz, companheiros, e um bom vôo para o novo destino.
Não conheci pessoalmente nem Kleyber nem Stephanini, mas isso não importa. Eram aviadores como eu. Com eles compartilhei o mesmo céu, os mesmos aeroportos, os mesmos prazeres e tensões da profissão. Talvez um deles, numa tarde perdida no tempo, estivesse na cadeira da esquerda daquele avião alinhado na cabeceira da pista 35L do Aeroporto de Congonhas, aguardando autorização da torre para decolar, enquanto eu, de meu Boeing 737-500, esperava, numa longa fila, a minha vez de entrar na arena. A cada decolagem, a cabeceira era ocupada pelo avião seguinte, e o mesmo ritual se repetia. Era uma sucessãode momentos solenes e mágicos, como aquele em que o touros encaram os toureiros antes dos embates finais. Naqueles momentos, éramos todos irmãos. De tribos diferentes, mas irmãos. Sabíamos dos perigos que diariamente nos rondavam. Eram ossos de um ofício perigoso, no qual as conseqüências de falhas humanas são muitas vezes catastróficas.Éramos todos dependentes emocionais da aviação. Ela nos atraíra desde meninos com força irresistível. Não houve como escapar a seu fascínio. Chegara a minha vez. Da cabeceira da pista, observando a fila de aviões que aguardavam minha partida, sabia que os olhares de meus companheiros estavam postos no Boeing azul e branco prestes a se lançar aos céus. Éramos novamente os meninos de calças curtas que passavam os sábados e domingos nas varandas abertas dos antigos aeroportos admirando os DC-3, Curtiss Commando, Convair e Constellations pousando e decolando. Éramos os mesmos,apenas nossos postos de observação agora eram melhores. Nunca foi fácil ser aviador. Enfrentar tempestades, pistas curtas e escorregadias, quase-colisões com outros aviões, acordar de madrugada, dormir tarde, passar noites voando, sacrificar vida pessoal, familiar e sentimental, não ver os filhos crescerem, não ter feriados, natal, ano novo, carnaval, fins de semana com a família nem com os amigos, comer apressado antes das descidas, sofrer de gastrite ou úlcera, embranquecer prematuramente os cabelos. De muita coisas nos privamos, mas jamais traímos aqueles meninos que um dia olharam para o céu e se deslumbraram; que não concebiam outra profissão que não a de aviador. Não era um veterano de cinqüenta e muitos anos quem pilotava o avião azul e branco naquela tarde distante; era o menino que eu um dia fora. Aceitávamos os riscos. Sabíamos que um dia talvez a sorte nos fizesse despencar do céu. Mas valia a pena. Em que outra profissão nos sentiríamos como águias ágeis e velozes? Que outro trabalho nos brindaria com mágicas noites de luar em catedrais de alvas nuvens? Onde mais achar crepúsculos assim?

Comandante Carlos Ari César Germano da Silva

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