Coluna do Mirisola

Vera Silvia Magalhães. Pra quê?

Marcelo Mirisola*

Ontem, zapeando nos canais comunitários (acho que foi na Tevê Câmara), deparei com uma senhora divertida e meio inchada. No começo, achei que era uma maluca. Então piscou o crédito, fulana de tal... não consegui ler o nome, “ex-guerrilheira”. Como assim? Como é que alguém pode ser “ex-guerrilheira”?

Seria a mesma coisa que dizer que fulano deixou de ser albino. Ou, sei lá, acreditar que aquela psicanalista do Rio de Janeiro realmente “cura” gays e os transforma em papais de família gelol exemplares. Ou pior. Acreditar que um Zé Dirceu da vida pode virar um Zé Dirceu. Bem, nesse caso, trata-se de trapaça pura e simples. Considera-se apenas a hipótese do mau-caratismo, descarta-se a transcendência.

O que absolutamente não era o caso de Vera Silvia Magalhães. No decorrer da entrevista, eu vi que de fato erraram no crédito. Aquela mulher jamais deixaria de ser uma guerrilheira. Uma mistura de doçura com desgraça, e um bom-humor desconcertante que acabou me hipnotizando. Ela sim, transcendeu a si mesma. Porque ficou no mesmo lugar.

Antes de continuar, e antes que alguém confunda alhos com bugalhos, quero dizer que Vera Silvia embarcou numa canoa furadíssima desde sempre. Aliás, ela mesma reconheceu isso na entrevista. Pois bem. Acho que ficou claro que nada tenho a ver com o credo e a ideologia dela. Apenas estou falando de qualidades raras hoje em dia: coragem, integridade, caráter, doação. Entregar a vida em função de algo que se acredita maior. Se esse algo era uma estupidez, se a idéia era uma idéia de jerico, aí já é outro papo. O que me chamou a atenção em Vera é que ela não viveu uma vida em vão – não se omitiu. E só isso, diante da babaquice generalizada que vivemos hoje em dia, já é mais do que o suficiente para levantar e aplaudi-la, e pedir bis a Vera.

Aí vocês diriam: Pol Pot e dr. Mengele também desfrutaram de uma vida plena. E eu serei obrigado a concordar, porém sou obrigado a fazer uma ressalva: não foi nem Pol Pot, nem dr. Mengele e nem o Homem do Sapato Branco que eu flagrei numa entrevista na tevê comunitária.

Vamos lá.

Vera, uma linda garota, era filha da alta classe média carioca, aos vinte anos largou Ipanema, o violão e o barquinho e aderiu à luta armada. MR-8. Anos 60, 70. No decorrer da entrevista, ela foi recordando passagens que incluíam assaltos a bancos e carros-fortes, amores, seqüestros, assassinatos, torturas brutais, exílio e desolação, sangue frio, muita ação e o quase ingênuo reconhecimento da derrota. As seqüelas eram visíveis nela. Alguns nomes famosos começaram a brotar do relato. Franklin Martins (que na época da entrevista ainda era comentarista da Rede Globo), Gabeira, Marighella. Do outro lado,o delegado Fleury e os torturadores, dentre eles um psiquiatra cujo nome agora não me recordo e que, anos depois, acabou sendo defenestrado pelos colegas de profissão, e ela, Vera Silvia Magalhães, a única mulher que participara do bem sucedido e cinematográfico seqüestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em setembro de 1969.

Numa parte da entrevista, ela confessou que jamais se imaginou empunhando uma arma. Logo ela, que ficou conhecida como “A loura 90 - um 45mm em cada mão”: a mulher que não traiu sua vocação, eis o ponto.

E eu do lado de cá da tela completamente sem ar, atordoado com as histórias daquela senhora que realmente só poderia ser uma maluca porque, além do bom humor, conservava a esperança e a razão. “Os loucos são aqueles que perderam tudo, menos a razão”(Chesterton).

Os relatos se sucediam. Os fantasmas envolvidos, tanto os mortos como os vivos, irrompiam daquela montanha-russa que foi a vida de Vera Silvia, ela comentava item por item, lembrava com dor e desdenhava da dor, atravessava as lembranças como se fossem uma sessão de tortura que não acabaria nunca mais, suas mãos tremiam e o cigarros eram tragados como se fossem a vida da própria Vera, sugada por ela mesma. Num só momento ameaçou soluçar, mas – como guerrilheira de fato - agüentou o tranco: foi na hora que revelou que só lhe haviam deixado uma lembrança do amor de sua vida, apenas uma foto de Jose Roberto Spigner, “aquele ali na estante”. O resto – dizia Vera: - “levaram tudo”.

Os estudantes enquadrados em Ibiúna, Wladimir Palmeira... a passeata dos cem mil, as panfletagens, os aparelhos que caíam. O País em transe. Um monte de equívocos. Mas nada foi de graça. Para ela, não.

Em 1972, eu tinha seis anos de idade e assistia os desenhos de Hanna & Barbera, e agora – quase quarenta anos depois - me pergunto, perplexo: mas que cazzo fizeram com a biografia dessa mulher?

Tudo bem, biografia é algo inalienável. No entanto, eu tenho a nítida sensação de que Vera Silvia Magalhães continua – até hoje – a ser usurpada. Em vida foi barbarizada pelo regime militar. Morta, continua sendo barbarizada - dessa vez pelos seus “herdeiros”: que defecam no seu túmulo e cospem na sua memória.

A propósito. Lembro de uma crônica de Fernando Gabeira (antes de ele mandar a filha surfar no Hawaí com dinheiro público) escrita no auge da crise do mensalão. O deputado e ex-marido de Vera Silvia, dizia com todas as letras que os militares jamais pediriam sua alma por sabê-la irrecuperável. Alma de terrorista, acreditavam os milicos. Nesse mesmo texto, Gabeira – comparando aqueles tempos com o Brasil do Lula – agradecia à deferência dos torturadores por o terem tratado como a um inimigo. Porra! Alma não se negocia!

Mal comparando: é a mesma coisa que – depois de todos esses anos - eu renegar o sorriso cínico do Mutley; é a mesma coisa que trair o amor de Penélope Charmosa com uma mulher melancia qualquer da vida. Cada um – afinal - acredita nas bobagens que lhe cabe e tem a alma que merece.

Não é possível que essa mulher tenha se arrebentado inteira em vão. Vera Silvia definitivamente não pegou em armas e não sofreu o resto dos seus dias as conseqüências de seus atos, desde crises renais agudas e sangramentos constantes nas gengivas até surtos psicóticos violentíssimos – entre um cigarro e outro acendido como se fosse o último - para ver o Greenhalgh advogando pro Daniel Dantas, nem para testemunhar Aloizio Mercadante escondido em seu gabinete com vergonha de encarar Zé Sarney defendendo o empreguinho do gigolô da neta querida. Hoje, "os companheiros" de Vera Silvia "atuam" no mesmo diapasão desse tipo de gente. A tribuna de Sarney é a mesma de Mercadante ... que a ocupa por conta do quê e de quem?

Ou será que Vera Silvia Magalhães teve suas unhas arrancadas por fidelidade ao “companheiro” Renan Calheiros? Ou teria passado três meses sendo estuprada a fim de garantir renúncia fiscal para os organizadores do torneio de hipismo de Athina Onassis?

Alguma coisa está errada no Brasil. Eu nunca fui petista, a última vez que votei foi na eleição que Jânio Quadros ganhou a prefeitura de São Paulo de Fernando Henrique Cardoso, professor de Vera no exílio, aliá Mas a pergunta é: quem são os herdeiros de Vera ? O que esses PuTos fizeram com a biografia “inalienável” de Vera Silvia Magalhães?

Em 1970, o DOI-CODI do Rio de Janeiro, baseado num quartel da Polícia do Exército na Rua Barão de Mesquita, aqui na Tijuca, não era exatamente um SPA. Ela não levou um balaço na cabeça e do semi-coma da UTI não foi jogada nos porões desse aprazível lugar e saiu de lá com 38 kg direto pro exílio para ver o Genoino dizendo que não tinha nada a ver com os dólares escondidos na cueca do irmão. A vida que Vera Silvia viveu não tem nenhum ponto de encontro com os afagos e beijinhos trocados entre Zé Sarney, o senador Fernando Collor de Mello e o presidente Luis Inácio Lula da Silvia. Ou tem?

Caramba! Vera Silvia foi eletrocutada, afogada, dependuraram ela no pau-de-arara, zoaram ela todinha, de dentro pra fora e de fora pra dentro. Para quê? Pra ouvir o Suplicy, depois de um rolo compressor ter passado sobre Pedro Simon, cantar Cat Stevens no plenário? Pra chancelar as mentiras de Dilma Rousseff ?

E Celso Daniel, o prefeito de Santo André, teria morrido por que também entregara sua vida a uma causa ridícula? E todos os outros mortos? Será que a vida deles foi tão equivocada que não vale mais do que um carteado sombrio num Solar de São Luiz do Maranhão?

Vale quanto, Ziraldo? Tenho apenas uma certeza. Vera Silvia Magalhães, e todos os outros que morreram em combate, sim, porque a guerra não tem fim para um guerrilheiro, vão cobrar sua parte. A indenização é outra. E eu, sinceramente, não queria estar na pele dos “operadores” para dar satisfações a ela. Nem aqui, nem no outro mundo.

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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