Coluna de Domingo

A palavra como instrumento de afirmação

“... parece que ninguém... - nem eu mesma – se interessaria pelos desabafos de uma garota de treze anos. Apesar disso, que importa? Quero escrever; e, mais que isso, trazer à tona uma porção de coisas de todo jeito que estão enterradas no fundo de meu coração.”

Rui Grilo
Quando, em 1942, Anne Frank escreveu esse trecho em seu diário, provavelmente não tinha idéia de que ele iria se transformar em peças de teatro, em cinema e exposições. Não imaginava que seria uma grande fonte de estudos sobre a evolução do nazismo e para maior compreensão da adolescência.

Em 2001, Esmeralda Ortiz , uma menina que vivia na Praça da Sé, diz em seu livro “Esmeralda – Porque não dancei”:

“Quando comecei a escrever, percebi que isso estava ajudando a organizar na minha cabeça tudo que tinha acontecido na minha vida.”

Esmeralda escreveu esse texto depois de passar por vários programas de ressocialização e de recuperação de dependência química.

Tenho utilizado esses textos para que os alunos percebam o verdadeiro sentido do ensino de Português: comprender que a linguagem é um instrumento de percepção de si, do outro e do mundo. Ao mesmo tempo pode ser um instrumento de libertação e de dominação. Anne e a Esmeralda, através de seus textos, mostram a necessidade de cada um expressar suas leituras de si e da sociedade e, enquanto refletiam sobre a própria existência, construíam um rico material para que seus leitores entendessem a época e o mundo em que viviam, possibilitando a comparação com as próprias existências.

Segundo Paulo Freire, nos momentos em que se luta para a libertação social e política, também floresce a percepção de que é necessário um maior domínio da leitura e da escrita para entender a própria realidade e registrar a própria história, segundo o seu ponto de vista, cotejando-a com o ponto de vista do outro.

O desenvolvimento da leitura e da escrita se acelera quando há a percepção de que seu domínio é um poderoso instrumento de libertação ou de dominação do outro.

Ao se discutir os problemas educacionais, ficar na discussão pura e simples das regras gramaticais é ficar na periferia do problema. A ênfase na leitura e na literatura favorece a discussão de valores, a identificação do que é essencial e do que é supérfluo, criar perspectivas de futuro, de sonhos e desejos a serem realizados. E a realização desses sonhos nunca é solitária. A literatura permite uma visão mais integrada e totalizante da realidade, rompendo com o sentimento de esquartejamento do indivíduo e de isolamento social.

Empurrados para a periferia, os excluídos sociais não deixam de sonhar e de criar produtos culturais , disputando o espaço com a elite , influenciando e sendo influenciada. Um bom exemplo disso é o HIP HOP, movimento que tem sua origem fora do Brasil, mas que aqui adquire formas próprias. Instrumento de denúncia social, caracterizou-se por uma linguagem dura. Desrespeitando os padrões formais, conseguiu criar o seu próprio circuito de produção e distribuição, lutando por uma autonomia da engrenagem comercial tradicional.

Para evoluir, vemos cada vez mais, ao lado dos seus elementos constitutivos - música, dança e grafite - uma valorização maior da literatura e da leitura. O RAP – ritmo e poesia – torna-se assim o que, em outra época, foi o repente e o cordel, expressando a leitura que o povo e determinados grupos sociais fazem da sociedade, rejeitando a leitura única da elite socioeconômica. Com isso, contribuiu muito para a evolução e mudança no que se refere à tolerância e à implantação de leis que garantam uma sociedade mais igualitária.

Quando o jovem não consegue extravasar seus sentimentos e emoções através da arte e das práticas esportivas e recreativas, ocorre a violência contra si próprio e contra os outros que o cercam.
Rui Grilo
ragrilo@terra.com.br

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