Olimpíadas

One world, one nightmare

Marcelo Mirisola*
Há quatro anos, Sarah, uma macaca do zoológico de Tel Aviv, resolveu andar sobre as duas patas, e intrigou cientistas do mundo todo. Naquela época, coincidentemente de Olimpíadas, escrevi o seguinte: “O engraçado é que ninguém se espanta com os lutadores de luta greco-romana nem com os judocas peso-pesados, especialistas em ficar de quatro. Eles e a comissão técnica e o Galvão Bueno, todos uivam e batem no peito feito orangotangos. O que essa gente que corre, pula, chuta bolas, nada e ganha medalhas tem de tão especial?”.

O espantoso – escrevi – : “Não é a macaca israelense que resolveu andar feito uma atleta olímpica, mas os atletas olímpicos­ que ficam de quatro e ganham medalhas. A cigarrinha-da­­­­­-­espuma também ‘desafia os próprios limites’ .Vejam só. Nossa amiga­ cigarrinha-da-espuma salta setenta vezes o seu tamanho. Mal comparando (porque a cigarrinha não dá entrevistas) é como se um Ronaldinho, de 1,75m, saltasse sobre duas estátuas da Liberdade, uma sobre a outra”.

Depois de quatro anos a mesma pergunta que não quer calar: “Por que ninguém condecora a cigarrinha-da-espuma?”

E infelizmente – depois de quatro anos, e provavelmente daqui a oito anos – terei de reproduzir o mesmo raciocínio que me obrigo a reproduzir nesse instante, ipsis litteris: onde estão os bombeiros, o presidente e o Galvão Bueno? Cadê o espírito olímpico, os patrocinadores e a Playboy? Os feitos da cigarrinha (já que o quesito “ultrapassar os próprios limites” é o que conta) não são muito mais assombrosos do que a gritaria e “os limites” dessa gente comum que corre, pula, chuta bolas?

Por que esse frenesi? Pra mim, Olimpíada é um festival de gente comum. Tédio, babaquice. O negócio é tão vazio quanto as prateleiras do Ayrton Senna (nenhum livro); típico herói dos heróis de si mesmo. Vou dizer uma coisa: esta gente-bicho ganha muito dinheiro, lê o Paulo Coelho (quando lê) e brota de qualquer lugar. Nada tem de especial. Pegue-se um Rodrigão da vida ( leia-se “Rodrigão” ou qualquer outro da seleção de vôlei, em Atenas ou Pequim, tanto faz); pois bem, se Rodrigão tivesse nascido na Itália, estaria lá nas olimpíadas do mesmo jeito, e com os mesmos 2,04m e defendendo a nação italiana, a porpeta e a pizza napolitana. A geografia é apenas um detalhe que deveria ser ignorado como as falésias, os recifes, os corais e a preferência sexual do Gilberto Gil.

Palavras que escrevi em 2004: “E daí que os africanos são os favoritos na maratona? Qual a diferença de fulano correr nas savanas africanas e na São Silvestre, na Avenida Paulista? Por Netuno! O que o maratonista faz de tão especial? Qualquer fusca modelo 71 tem desempenho superior — e mais confortável, a meu ver. E o Oscar Schmidt? Qual a relevância do Oscar Schmidt? Vejamos: foi candidato a senador apadrinhado por Paulo Maluf (na eleição que elegeu Celso Pitta...). O que mais? Hoje em dia vende badulaques na televisão, dá ‘palestras’ e se proclama ‘exemplo para a juventude’. Sei, sei.

O homem passou a vida enfiando bolas numa cesta! Por todos os Deuses Olímpicos! Além disso, freqüenta o sofá da Hebe! Ele quer dar exemplo para a ‘juventude’... Que juventude? Da TFP, só pode ser”.

Olimpíadas de Pequim, 2008. Eu falava da cigarrinha da espuma. Se não bastasse a pobre cigarrinha ficar sem medalhas, temos, nesse ano da graça de 2008, um agravante hiperbólico: qual seja, o país sede da Olimpíada, a China.

Contudo, eu penso que é exatamente esse agravante que pode dar uma chance aos atletas de se redimirem perante a maior de todas, ela, a cigarrinha-da-espuma.

Os alemães largaram primeiro. E iniciaram os protestos. A ciclista Sabine Spitz escolheu posar com a foto de Yang Tongyan, escritor condenado à prisão por defender a democracia. A nadadora Petra Dallmann também fez sua parte: deixou-se fotografar com a imagem sobreposta de Hu Jia, o principal dissidente chinês que denunciou abuso dos direitos humanos.

Outros atletas estão fazendo o mesmo. Quarta-feira passada, seis ciclistas norte-americanos desembarcaram em Pequim com máscaras respiratórias, uma provável alusão ao ar irrespirável da capital chinesa e ao cheiro de morte que paira sobre todo o país. No dia seguinte ao desembarque – decerto pressionados – pediram desculpas. Mas a imagem havia sido registrada, bastou, portanto, um gesto: nada que exigira muito treino e queima de calorias. O esgrimista Imke Duplitzer deixou-se fotografar com a imagem sobreposta do advogado Gao Zhisheng, conhecido por defender dissidentes políticos. Até o Bushinho (talvez contaminado pela obamania e descontada a piada de péssimo gosto que há por trás disso...) conclamou os atletas norte-americanos a não agirem apenas como esportistas, mas como “embaixadores da liberdade”.

E teve mais. O sudanês naturalizado americano Lopez Lomong, refugiado de guerra e membro do Team Darfur, o mais organizado movimento de atletas contrários ao regime chinês, foi o porta-bandeira dos EUA na cerimônia de abertura da Olimpíada. Mesmo se incluirmos a demagogia útil no Bushinho, não é nada pouco.

Já o Brasil – eita... – começou dando vexame. O nome do atleta Fabio Gomes, que disputará uma medalha no salto com vara, constava de um manifesto internacional contra a violação dos direitos humanos. Houve um erro. Em entrevista ao Jornal Nacional, o infeliz negou peremptoriamente ter assinado qualquer documento. Direitos humanos? Que é isso? O homem só pensa na vara e em ganhar medalhas, ele e o Mutle (o cachorro do Dick Vigarista, lembram?). Infantil para não dizer omisso. Ou em algum instante alguém achou que esse sujeito vislumbrou algo diferente do próprio bolso? Foda-se a liberdade de expressão.

E daí que, em 1989 – segundo informações da Cruz Vermelha – duas mil e seiscentas pessoas foram massacradas na Praça da Paz Celestial? E daí que de lá para cá a repressão política na China só fez piorar? A propósito: qual o recorde mundial no salto com vara? Vale lembrar: a cigarrinha-da-espuma – sem o uso de nenhuma muleta – salta setenta vezes o próprio tamanho; e faz isso com muito mais eficiência, sobriedade e discrição, sem platéias nem chiliques – e de graça. O “atleta” Fabio Gomes achou que estava livrando a cara. Omisso, repito. E o pior é que o dinheiro do contribuinte é que vai encher a barriga e a pretensão de tipos como ele. O governo federal e suas estatais despejaram R$ 1,2 bilhão nessa Olimpíada, sem falar na Lei Piva, que reverte 2% dos prêmios das loterias federais para os esportes “amadores”. Para quê? Para um Fabio Gomes da vida escapar pela tangente, se omitir?

A pergunta que me faço é a seguinte: se Fabio Gomes ganhar uma medalha (ou mesmo se não ganhar, o que é mais provável), a simples presença desse cara em Pequim é comprometedora. Isto é, além de cúmplice. porque sou brasileiro como ele “e não desisto nunca”, eu também estaria sendo omisso? Quantos são os omissos na delegação brasileira? Alguém devia fazer uma pesquisa: para saber, afinal, qual a posição dos atletas brasileiros em relação à censura na China, e o que eles acham da carga horária do trabalhador naquele país, da remoção violenta de moradores da região de Qianmen, e do fato de o governo chinês ter negado visto para dois atletas americanos integrantes de uma organização que presta assistência humanitária às crianças de Darfur. Aliás, será que eles sabem do genocídio que acontece em Darfur? Sabem ao menos onde fica o Sudão? Será que nossos heróis olímpicos sabem que a China é a maior compradora do petróleo produzido naquela região, e a maior vendedora de armas para o seu governo? O que pensam disso? Qual a posição dos atletas brasileiros em relação ao Tibete?

A partir do posicionamento desses atletas, as respectivas derrotas e vitórias de cada um seriam vistas sob um outro ponto de vista. Um sujeito que se omite e compactua com a morte, a arbitrariedade e a censura não merece ganhar medalhas, destoa gravemente da idéia de pertencer a uma nação democrática. Um cara do feito desse Fabio Gomes não me representa, nem aqui, nem na putaqueopariu, muito menos na China.

Alguém poderá dizer: os jogos de Moscou,em 1980, foram muito piores do que os de Pequim em termos de restrição à liberdade de expressão. A diferença é que, naquela época, o presidente dos EUA era Jimmy Carter, e ele liderou o boicote de 61 nações aos jogos olímpicos. No começo daquela década – nada a ver com olimpíadas – Serginho Chulapa azucrinava a vida de Emerson Leão, e morreriam Nelson Rodrigues, Vinicius de Moraes, e Henry Miller. Depois disso, Evandro Mesquita, Serginho Malandro, Ricardo Graça Mello e o “Menino do Rio” e ex-careca André di Biasi inaugurariam a geração saúde e cocaína. Em pouco tempo, coisa de cinco ou seis anos, a Aids, o Ayton Senna e as bandinhas de rock brasilienses explodiriam, e o mundo ficaria irremediavelmente mais chato, conservador (olímpico) e bundão.

Voltando. Eu dizia que a oportunidade que o “atleta” Fabio Gomes jogou na lata do lixo é mais importante do que qualquer podium, qualquer medalha de ouro. Será tão difícil de entender, Galvão Bueno? Por que esse sorriso acolhedor e quentinho, Fátima Bernardes? Por acaso você, além de mãezona exemplar, também é sádica e curte uma necrofilia? Você estaria achando graça de quê? Do assassinato de duas mil e seiscentas pessoas e dos gritos de horror que ecoam na Praça da Paz Celestial? Do espancamento dos seus colegas jornalistas na distante Kashgar quando tentavam cobrir um atentado terrorista? Por que essa fofura e cumplicidade?

Bem, de qualquer forma, desejo que esse tal de Fabio Gomes seja empalado pela vara que tanto preza, para o desagravo da cigarrinha-da-espuma, e para o bem da nação. Por fim, vou ter de citar o Guga. Outra vez, o Guga. Na época em que ganhou o torneio de Roland Garros, ofereceram um carro de bombeiros para ele desfilar nas avenidas de Florianópolis. Sabem o que o Guga disse?: “Só subo em carro de bombeiro para apagar incêndio”. A cigarrinha-da-espuma não chegaria a tanto. O resto é ouro, morte e pesadelo.


PS:

1. "Muito tosco aquele chinês pedalando no ar: alguma coisa estava desajustada na câmera lenta que a tecnologia da censura ajambrou para ele. De resto, quem não sabia que ele ia acender o pavio da pira olímpica? O Marquitos ( aquele do Ratinho,lembram?) faria melhor. Fica dada a sugestão,caso o Lula consiga trazer os próximos jogos para o Brasil".

2. "Queria agradecer a todos que têm participado do Fórum de leitores. Resolvi não responder. Não é por falta de educação. Mas porque não queria transformar isso aqui num blogue. De qualquer forma, muito obrigado".

Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.


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