Opinião

A moeda de troca de Cuba

Editorial do Estadão
Na quarta-feira passada, no mesmo dia em que o governo cubano anunciou a decisão de libertar 52 presos políticos ao longo dos próximos 4 meses, o ex-ditador Fidel Castro, que em 2008 transferiu o poder para o irmão Raúl, fez-se fotografar visitando o principal centro de pesquisas científicas de Havana. Foi a sua primeira aparição pública em 4 anos fora da residência onde costuma receber dignitários estrangeiros, como o bom amigo Lula da Silva.

Na última segunda-feira, no mesmo dia em que o primeiro grupo de libertos embarcou para a Espanha, a TV cubana levou ao ar uma entrevista gravada com Fidel - a primeira em 4 anos, também. É improvável que se trate de coincidência, embora não estejam claros os nexos entre o súbito reaparecimento do "comandante" e a soltura dos prisioneiros. Nem na ida ao centro científico nem na entrevista, ele disse qualquer coisa relacionada com o acordo firmado entre o seu irmão, o cardeal Jaime Ortega, arcebispo de Havana, e o governo espanhol para a libertação das vítimas remanescentes da chamada "Primavera Negra" de 2003.

À época, a repressão castrista se abateu sobre 75 supostos "conspiradores aliados aos Estados Unidos". Em processos sumários e a portas fechadas, eles foram condenados a até 28 anos de cadeia. Naturalmente, não tiveram acesso a advogados ou às provas que os incriminariam. Com o passar do tempo e sob pressão dos apenas tolerados movimentos de defesa dos direitos humanos no país, a começar das Damas de Branco, que reúnem mães, mulheres e filhas dos encarcerados, uma vintena deles, muitos com graves problemas de saúde, foi solta.

Em fevereiro, o preso Orlando Zapata Tamayo morreu depois de 85 dias de greve de fome. O presidente Lula estava lá confraternizando com os seus algozes e cometeu a infâmia de culpá-lo pela tragédia. Seguiu-se outro protesto, dessa vez por um cubano em liberdade - valha o que valer o termo sob o tacão do regime de partido único. O dissidente Guillermo Fariñas só voltou a se alimentar depois de 135 dias quando, aproveitando-se da visita do chanceler espanhol Miguel Ángel Moratinos, Raúl Castro comunicou a libertação dos 52 da "Primavera Negra". Segundo cálculos conservadores, continuam trancafiados, por motivos políticos, 115 cubanos.

Terá Fidel desejado fazer, com as suas aparições, uma advertência velada contra o que deve considerar concessões excessivas do irmão? Ou, com a sua mera presença pública, indicar que, apesar delas, nada mudará essencialmente na ilha? O fato de, na entrevista televisada, ele ter falado em "risco de guerra" no Oriente Médio, que culminaria com um ataque nuclear dos Estados Unidos e Israel ao Irã, pode ser interpretado como uma forma de sabotar qualquer nova iniciativa de reaproximação entre Washington e Havana, a partir da soltura dos presos.

Ninguém conhece melhor do que ele os perversos benefícios do bloqueio econômico americano para a sobrevivência da ditadura. O boicote, por sinal, não impede que os americanos vendam alimentos a Cuba, pagos à vista: só isso já faz dos EUA o quinto maior parceiro comercial do país. Para o castrismo, pior é o definhamento das transações com a União Europeia, em protesto contra a onda repressora da primavera de 2003 e como pressão para o fim dos encarceramentos políticos na ilha.

Essa a razão essencial da atual "magnanimidade" do regime. De há muito que em Cuba os chamados prisioneiros de consciência são usados como moeda de troca para manter respirando a agonizante economia local. Não há, por isso, motivos para acreditar que a abertura seletiva dos cárceres castristas prenuncia uma abertura política, com imprensa livre, Judiciário independente e direito de ir e vir.
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