Ciência e Sociedades

A ideologização do jornalismo

Ulisses Capozoli (*) (original aqui)
O físico e filósofo da ciência inglês John D. Bernal, em seu clássico History of Science, escreve que a imprensa e os canhões foram invenções fundamentais para o fim da Idade Média. Tanto a imprensa quanto os canhões têm uma dívida pouco reconhecida com a alquimia. Do lado da imprensa, o papel e a tinta preta, livre de óleos e de secagem rápida, dependeram de soluções alquímicas. O débito dos canhões, que transformaram as fortalezas antes inexpugnáveis em alvos certeiros, está na purificação da pólvora.

A imprensa, ao popularizar a Bíblia e publicar os manuais com segredos antes confinados às guildas, mudou a interpretação do mundo; enquanto os canhões, manejados por mãos revolucionárias, desmantelaram fisicamente as fortificações da antiga ordem. Nesse cenário surgiu a ciência moderna, livre da teologia, da astrologia e do esforço vão de unir fé e razão, com a escolástica. Foi a ciência moderna que esteve na base da Revolução Industrial, a produção de máquinas que substituíram os músculos humanos e dos animais. E as máquinas mudaram para melhor, nos países desenvolvidos, a sorte de milhões de pessoas.

A menos que se considere que o mundo paralisou-se desde então, certamente é interessante considerar em que medida a internet desmantela, hoje, um modelo de imprensa que caminha para a extinção. Um exemplo significativo é o texto publicado no domingo 91/7/01) em O Estado de S.Paulo (página A16), com o título de "Pesquisa científica: já somos craques".

Onde estão os dados que justificam um título como este e onde se encontram as justificativas para acenar com a promessa de as universidades particulares darem conta da pesquisa científica como se fosse, também aqui, um caso de mera privatização?

Se não estão no texto, como pode constatar um leitor mais atento, a resposta é: na, o que não convém a uma sociedade que esforça para livrar-se de raízes históricas pouco promissoras.

Reinvestimento de lucros

A matéria, visivelmente "chapa branca", a que os repórteres não podem resistir sob pena de cair em desgraça com seus editores e, num passo seguinte, perder o emprego, tem contradições curiosas. A primeira informação, de uma pretensa nova fase das universidades privadas, que estariam muito interessadas em investir em pesquisa, diz que elas ficaram com 4% dos 550 milhões de dólares que a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) aplicou em bolsas, estudos e projetos, em 2000.

Se as privadas ficaram com 4%, significa que 96% foram direcionados às instituições públicas, que, historicamente, ainda que se trate de uma história recente, são as que fazem a pesquisa científica no Brasil. Mais que isso: os 4% dirigidos às privadas vieram da Fapesp que, longe de ser uma agência privada, é um banco de recursos públicos, alimentado por impostos dos contribuintes paulistas, para pesquisa e formação de recursos humanos.

Primeira contradição: se as universidades privadas estão mesmo dispostas a fazer pesquisa, buscam dinheiro para isso junto às agências bancadas pelos impostos dos cidadãos e não junto a seus fundos privados. Qual a vantagem para a sociedade?

A segunda contradição vem em seguida, na opinião colhida junto a dois membros da comunidade científica. O primeiro é o professor Carlos Vogt, ex-reitor da Unicamp e recém-eleito vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O outro é o presidente da Fapesp, Carlos Henrique de Brito Cruz.

A colocação que ambos fazem não autoriza a conclusão que está no título e que também não se articula com o texto. O título, de gosto duvidoso e o recurso precários dos dois pontos, denuncia o que um desenho animado popularizou como "saída pela tangente" – outra evidência de matéria encomendada; uma versão, na redação, das medidas provisórias utilizadas com gosto pelo presidente da República.

Mais interessante, no entanto, é que na seção "Tendências e Debates" da Folha de S.Paulo (26/6/01, pág. A3), o próprio Cruz escreve um longo artigo tratando do mesmo assunto sob o título de "Universidade pública e desenvolvimento". E os dados, os argumentos e a conclusão a que chega são no sentido oposto da matéria publicada pelo O Estado de S.Paulo, para qual ele foi ouvido...

Depois de comparar o Brasil com a Coréia do Sul, registrar nossa desvantagem relativa e recomendar que aceleremos o passo, Cruz escreve que "considerando-se o exemplo de praticamente todos os países desenvolvidos, não é realista esperar que o sistema privado de ensino superior possa suprir as necessidades de formação". Segundo Cruz, "basta ver que no país campeão mundial da iniciativa privada, os Estados Unidos, 78% dos 14 milhões de matrículas em cursos superiores se concentram em instituições públicas".

O texto de O Estado de S.Paulo diz que Cruz classifica de "inegável a tendência de crescimento das particulares, embora veja limites neste processo". Não especifica, claramente, que limites são estes. E o próprio Vogt, num segundo momento, e numa retranca separada do corpo principal, adverte sobre as universidades privadas, que "para que as pesquisas nas particulares ganhe peso maior no cenário nacional é preciso mudar a estrutura e o perfil do ensino superior privado". "O ideal", argumenta Vogt, "seria que as universidades tivessem uma estrutura de fundação, em que o lucro é reinvestido na própria instituição". E acrescenta que "foi esse o modelo que permitiu que as universidades particulares ganhassem força nos Estados Unidos". E essa é a terceira contradição entre o que os entrevistados disseram e a conclusão da matéria.

Fuga de cérebros

Voltemos ao artigo de Cruz, na Folha. Referindo-se ainda aos Estados Unidos, diz que "dos 22% de matrículas em instituições privadas, somente 1,4% estão em instituições com fins lucrativos", o que reforça a advertência de Vogt ao Estadão. Esta é a quarta contradição. Em seguida, escreve Cruz, "este último dado [1,4% em instituições com fins lucrativos nos EUA] indica que, em países onde os cidadãos estão acostumados a exigir valor e qualidade em troca de seu dinheiro, ensino superior não é uma maneira de enriquecer empresários. Por que razão no Brasil isso deveria ser diferente?" Embora não tenha sido intenção original de Cruz, essa pergunta deveria ser respondida pela direção de redação do Estadão.

É ainda Cruz quem argumenta, em seu artigo da Folha: "A maior parte do investimento anual em ensino superior nos Estados Unidos – em torno de US$ 120 bilhões – é feita pelo governo. No Estado da Califórnia, 13% dos dispêndios do governo estadual são dedicados à educação superior". Outros Estados norte-americanos, registra Cruz, têm a mesma política.

Mas os Estados Unidos não são os únicos a agirem assim. Cruz escreve que "na Inglaterra, 100% das matrículas no ensino superior são em instituições públicas. Na Itália e na Alemanha, idem. Na França, mais de 95% das matrículas são públicas. Em quase todo o mundo a estratégia para o ensino superior tem sido baseada no esforço estatal. Bastariam esses números para desarmar o discurso privatista mais empedernido. Mas a realidade nacional oferece um argumento a mais: nossas universidades públicas são um patrimônio institucional brasileiro que, apesar de sua juventude, maior nível de eficiência obteve ao longo do século. Em algumas áreas, como na pós-graduação, por exemplo, muitas delas nada têm a perder em relação às melhores do mundo".

Aqui aparece a quinta contradição. Se o Estadão participou da fundação da primeira universidade brasileira, a USP, em 1934, por que perdeu o rumo e defende, agora, uma privatização a todo custo? Será que os Mesquita ancestrais tinham visão mais ampla do mundo?

Ainda aqui se poderia acrescentar mais alguns argumentos: que o Brasil forma recursos humanos, aqui e no exterior, com bolsas de agências públicas, mas não tem como fixá-los, gerando o que se convencionou chamar de "fuga de cérebros". Não sabemos sequer quantos pesquisadores estão no exterior nesta condição. Mas mesmo quando consegue fixá-los no país, especialmente no caso de jovens doutores, as verbas para financiamento de pesquisas são insuficientes para atender ao menos satisfatoriamente a demanda, gerando desânimo e, em muitos casos, abandono da atividade.

Excesso de zelo

Evidentemente que nada disso deve ser motivo de derrotismo, o que configura uma outra questão, a qual o governo FHC cunhou de "fracassomania". Na antiga União Soviética, Stálin enviava críticos e dissidentes para a Sibéria ou para os hospícios. Como estamos na democracia tucana, qualquer crítico é desqualificado como "fracassomaníaco", "neobobo", "caipira"ou simplesmente "vagabundo".

Para compreender o que ocorre no país, no entanto, os diagnósticos devem partir da realidade, especialmente se envolvem o jornalismo. Ideologia, neste caso, não contribui em nada, a não ser para o desaparecimento do que muitos ainda podem entender como fortificações centenárias e inexpugnáveis. E a internet, com a vitalidade que a imprensa teve em seus primeiros tempos, certamente é a melhor evidência disso.

Como se não bastasse, a edição do mesmo domingo do Estadão tem outras discrepâncias que mesmo o zelo excessivo para agradar ao governo não pode dar conta. O alegado avanço das universidades privadas, evidência de uma pretensa reorganização interna, não combina com o título e conteúdo da matéria publicada na página A17, na qual o repórter Eduardo Nunomura, baseado em dados fornecidos pelo Ministério da Justiça japonês, mostra que "a invasão brasileira no Japão bate recorde". Os mais de 250 mil brasileiros morando no Japão superam a população de cidades como "Limeira, no interior de São Paulo, ou Governador Valadares, em Minas," escreve o repórter. Esse recorde histórico, segundo Nunomura, "supreende porque a economia japonesa não vai bem. Há quase 3,5 milhões de desempregados". A conclusão óbvia é que, mesmo em crise, o Japão ainda é mais acolhedor para os dekasseguis que o Brasil.

(*) Jornalista especializado em divulgação científica, historiador da ciência e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC)

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