Opinião

A pedagogia do cinismo

Editorial do Estadão
Ao desdenhar do noticiário sobre a farra das passagens áreas na Câmara dos Deputados - apenas uma de uma sequência ainda inesgotada de denúncias envolvendo parlamentares e altos funcionários do Legislativo -, o presidente Lula fez mais do que atender a uma presumível cobrança recebida dos presidentes das duas Casas do Congresso, o deputado Michel Temer e o senador José Sarney. Os dois hierarcas do PMDB queixaram-se a Lula de não ter ele dito em três meses uma única palavra que se contrapusesse aos efeitos junto à população da sequência de escândalos levantados pela imprensa. O presidente passou a cortejar com afã renovado o apoio do partido à candidatura Dilma Rousseff em 2010 desde que se tornou conhecido o problema de saúde da ministra.

A cobrança, em si, era já uma enormidade: nenhuma das revelações se comprovou infundada até agora e em nenhum momento a imprensa aproveitou os vexames destampados para acusar indistintamente os membros do Congresso e muito menos investir contra a instituição legislativa. Não tivesse Lula sacrificado na pira do mensalão o senso ético de que fazia praça em tempos idos, teria moral para rejeitar a indigna demanda da dupla peemedebista com o argumento de que o Legislativo, até por missão constitucional, pode se pronunciar sobre assuntos do Executivo, mas a recíproca não é verdadeira. Ou, não tivesse ele de há muito passado a acreditar no que viria a dizer sobre a exposição dos malfeitos parlamentares, poderia aplacar os aliados afirmando, por exemplo, que o Congresso, como instituição e por sua história, é maior do que a soma de suas partes e estas são predominantemente boas.

Mas isso seria pedir demais a quem, mandando às favas escrúpulos passados, aprendeu a juntar no mesmo saco a primazia dos seus interesses políticos e conveniências pessoais com uma visão cínica do sistema pelo qual se elegeu - o mensalão descende das contas da campanha de 2002 - e com o qual governa. Assim, quando declara que as denúncias dos abusos com as passagens aéreas dos deputados tratam "como se fosse uma novidade uma coisa que é mais velha do que a história do Brasil" (sic) e quando acrescenta que "temos coisas mais importantes para discutir", ele afaga aqueles que outrora incluiria no rol dos "300 picaretas" do Legislativo e deixa à mostra o imitigado pragmatismo com que espera ver realizadas as suas prioridades. É a velha teoria de que os fins justificam os meios.

Se o crescimento econômico, a geração de empregos e a redução da desigualdade social são metas justas, Lula parece raciocinar, justo também se torna tirar o proveito possível dos piores vícios da política brasileira. Foi com esse espírito que ele chegou ao Planalto, reelegeu-se e trabalha para eleger a sua candidata à sucessão. Claro que as metas são indissociáveis da sua presença no poder e da perpetuação do lulismo. Por isso também, quando conta que usava passagens de sua cota como deputado para "convocar dirigentes da CUT e outras centrais sindicais" e quando comenta que, se o mal do Brasil fosse essa clamorosa apropriação indevida de dinheiro público, "o Brasil não tinha mal", Lula deixa clara a perversão a que submeteu os valores políticos com os quais se identificava e que fizeram do sindicalista renovador transformado em líder partidário uma figura ímpar na cena nacional.
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