Opinião

Um novo enredo

Fernando Henrique Cardoso
De vez em quando, a História prega uma peça a seus principais protagonistas. Mas também, às vezes, alguns desses são capazes de reescrever o enredo para sair da entalada. Até agora tem sido o caso de Barack Obama. No começo de sua corrida à Casa Branca poucos apostavam nele. Vitorioso, entrou em cena como um César negro, cheio de ânimo e de promessas. Mas o cenário e o script não poderiam ter sido piores: recebeu a herança de Bush, com suas guerras, arrogâncias e déficits fiscais, e ainda por cima se elegeu em meio à voragem de uma crise financeira global.


Obama, em seus cem dias inaugurais, vem conseguindo redesenhar o quadro. Não que tenha feito milagres com a economia, pois isso não existe. Mas teve a sabedoria de emitir os sinais que se esperavam, exercendo uma liderança moral no mundo. Para embasar seus passos começou cumprindo o prometido. Enviou ao Congresso uma proposta orçamentária audaciosa, na qual reafirma seus compromissos na delicada área da saúde pública e sua atenção voltada para a classe média e para os mais pobres. E se jogou na construção de um roteiro internacional de restabelecimento da confiança. Começou por nomear sua contendora secretária de Estado, demonstrando segurança e bom cálculo político. Designou como enviados especiais às áreas mais sensíveis do mundo pessoas de diálogo. Dirigiu-se ao Irã sem rodeios, começou a se descomprometer com os falcões do Oriente Médio, não teve medo de caretas na América Latina e deu passos, ainda tímidos, para descongelar Cuba. Não é pouca coisa.

É certo que na resposta à crise o governo Obama se mostrou mais tímido do que na cena política. Em encontro em Nova York, no começo de abril, com Georges Soros - que apoiou Obama muito antes de ele parecer capaz de vencer as primárias -, perguntei-lhe como via o início do governo. Não hesitou: vai tudo muito bem, mas ainda é tímido na contenção da crise e, quem sabe, ainda está muito influenciado por quem reduz o mundo a Wall Street. A meta, até agora, tem sido a de queimar reservas de confiança financiando, à custa do futuro, todo e qualquer buraco financeiro que surja. Pode até dar certo, mas o preço (digo eu, não Soros) será um horizonte inflacionário, uma puxada na taxa de juros para evitar o desmoronamento do dólar e um stop and go da economia, que cresce um trimestre, outro patina.

Como o artista é competente, talvez dê para redesenhar o quadro e, a despeito das dificuldades econômicas, projetar um futuro de maior confiança e de paz. O encontro do G-20 em Londres foi auspicioso. Desde o tempo das crises financeiras dos anos 1990 venho insistindo na tecla: o FMI é antes fraco do que forte, ranheta com suas condicionalidades porque sem recursos de imaginação e de dinheiro para salvar quem precisa dele; o Banco Mundial tem menos recursos que o BNDES; as organizações financeiras internacionais de internacional têm o nome, pois o processo decisório está concentrado na mão de poucos, quando não de um só; e assim por diante.

Esse discurso, agora, é o de todos. E o que é melhor, políticas transformadoras começam a ser postas em prática, embora ainda não no que é essencial: no compartilhamento de poder decisório. Será que Obama terá a grandeza e as condições para dobrar o "espírito de Wall Street" e deixar claro que o mundo é mais do que um mercado? Os sinais iniciais foram auspiciosos, repito. Mas é necessário mais. A encruzilhada que a crise financeira criou para o mundo tem mais que dois caminhos. Um, certamente, seria suicídio, o de fechamento das economias, aumento de protecionismo, crença em demagogos nacionalisteiros e autoritários, como ocorreu pós-1929 e como, ingenuamente e com prisma invertido, parecem crer alguns líderes regionais. Mas também iria por mau caminho a pura reconstrução da ordem que pegou fogo com a crise, a do fundamentalismo de mercado e da arrogância unilateral na política externa.
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