Crônica

Reforma no currículo escolar já

“Já acompanhei vários alunos que entraram para o tráfico. A gente percebe que fica mais agressivo, tem roupas caras. Uma vez, num tiroteio, ouvi o som de uma granada. Os alunos riam.”
Declaração dada ao Jornal do Brasil por Carlos Eduardo Freire Maciel, professor de história


Marcelo Mirisola*

Claro que eles riram, riram da sua cara, professor. Riram do descompasso entre o que o senhor era obrigado a ensinar e o que eles queriam aprender. Provavelmente riram do sistema de aprovação automática, e dos Ministérios da Educação e Cultura, e riram da pompa e da circunstância e dos coquetéis em homenagem ao centenário da morte do Machadão, riram da Lei Rouanet, e riram do cabelo pintado dos velhinhos da “acadimia”, e riram das mentiras que contaram para eles, e também riram da carinha de espanto da Fátima Bernardes quando anunciou mais um diretor de presídio assassinado no Rio de Janeiro, riram da palavra “chacina” pronunciada pela mesma Fátima, e riram da cara dos playboys que cantam barquinhos a deslizar no macio azul do oceano blue, eles riram do tratamento que a Fátima fez para engravidar, e do condomínio fechado onde ela vai criar os três filhotes, isso tudo, professor, é muito engraçado, o senhor não acha? Os garotos se divertem. Qual o espanto? Seus alunos riram do Presidente da República dizendo que sem educação o sujeito não chega a lugar algum. Nesse ponto, eles não agüentaram de tanto rir, e então BUUMM! a granada explodiu.

O que será que o professor Carlos Eduardo Freire Maciel ensinava na hora da explosão? A Conjuração dos Alfaiates?

Diante disso, voltei aos meus dezesseis anos, 1982.

Pensei nos tempos de escola: lembrei das “aulas” que tive no bilhar que ficava no bar da esquina. Foi lá que conheci a Leninha, a professora que cobrava por hora, mulata deliciosa. Lembrei das coisas que aprendi ao longo da vida, e cheguei a um termo mais do que óbvio: guardo comigo os livros que li, meus amigos e meus amores. Isto é: apenas aquilo que me interessa. O resto foi exasperação, encheção de saco de professor, suspensão, advertências, violência, nota vermelha, tédio, humilhação, dinheiro jogado fora.

Acho até que vale a pena reproduzir alguns trechos (longos...) da crônica que publiquei aqui no Congresso em Foco, no dia 3 de março deste ano. Eu dizia que, aos dezesseis anos, Luiza Brunet era uma necessidade premente. Ela me “inspirava” mais do que Machado de Assis. E tinha de ser assim e, aliás, deve ou devia ser assim até hoje.

O quê, para um adolescente miolo-mole, é mais instigante? Um professor discorrendo sobre mitocôndrias, ou uma granada explodindo na quadra da escola?
O adolescente-delinqüente de hoje prefere depredar a ter de encarar um Machado de Assis. E – pasmem – tem lá sua razão.

Bem, vou ter de reproduzir, ou melhor, sou obrigado a reproduzir trechos dessa crônica ipsis litteris, para provar que a depredação, o desdém, e a violência contra os professores – ainda – não são nada perto do que está por vir. Presta atenção, professor Carlos Eduardo:
Nem vou falar na tabela periódica. Vou me ater mesmo ao velho Machadão.
Em 1984, Machado já era um desperdício, hoje – pensando bem – com as opções que o “mão peluda” tem na internet, e com a concorrência dos traficantes de drogas, a leitura de Machado de Assis é um atentado contra o próprio Machado de Assis. Uma condenação à revelia.

Impossibilitado de comparecer ao baile funk, Bentinho, além dos vários chifres e dribles que levaria de antemão, nem sequer teria uma chance de suspeitar do seu melhor amigo. Numa hora dessas – na melhor das hipóteses –, Escobar deve estar depilando o buço no salão de beleza do traficante boliviano. Nelson Rodrigues, sim, faz sentido. Questão de tecnologia.

Há muito tempo os garotos desistiram de colecionar selos. E as meninas, por sua vez, deixaram de ser oblíquas Capitus para se transformarem em ostensivas biscates, elas colecionam abortos em vez de bonecas. O dilema de Bentinho e a biscatice de Capitu são quimeras perto de um jurássico Mario Bross da vida. Eu penso que é quase um crime obrigar um adolescente a ler um livro de Machado de Assis. Isso para ficar no óbvio. Nem vou falar em mitocôndrias. O sujeitinho(a) – obrigado a ler o resumo de Dom Casmurro – vai acabar mesmo é misturando literatura com a Tabela Periódica. Para ele (a), Machado de Assis e a massa molecular de um polímero têm o mesmo significado: cairão no vestibular. Só isso.
Aos dezesseis, dezessete anos, o(a) garoto(a) simplesmente não têm os instrumentos cognitivos, morais e psicológicos para chegar a qualquer lugar diferente da cantina da escola, ou da própria genitália. Será que é tão difícil de entender? Nessa idade, lembro, eu não sabia nem sequer dizer bom-dia. Não digo que devia ser proibido ler Machado de Assis aos dezesseis anos, porque sempre existirão os Nerds e as exceções de praxe, mas facultativo.

A vida do lado de fora não é facultativa. E a concorrência – convenhamos – é desleal, explosiva e muito mais interessante. Por isso, sugiro o sepultamento definitivo de Brás Cubas, fantasminha de merda. Que as escolas adotem Bukowski contra o crime. Reforma no currículo escolar já!

E, no embalo, vamos banir de vez Tomás Antônio Gonzaga e cia ltda, ah, não lembro de nada tão broxante quanto Marília de Dirceu, do supracitado árcade. Os românticos, aliás, e a mania deles de idealizar mulheres branquelas e fantasmáticas não eram menos modorrentos, a turminha de Casimiro de Abreu, provocava-me – como diria Marcos Rey – “aversões glandulares”. E os simbolistas então? Não eram muitos, se bem me lembro, eram dois os pentelhos, que valiam por todo um exército: Alphonsus de Guimarães e Cruz e Sousa, esse último autor do pegajoso Broquéis, ah, esse cara era – e continua sendo... como pode? – um verdadeiro castigo para um garoto de dezesseis anos. Depois vinham os parnasianos, ah, Fagundes Varela, como você encheu meu saco! Ah, Olavo Bilac, eu o entendo... e até já ouvi estrelas.

"Amai para entendê-las:
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".

O problema é que o céu anda meio embaçado pro lado de quem tenta ouvir astros e estrelas, e o amor só se cogita se for expresso, bem-remunerado, limpinho e longe daqui. O Funk atropela. No Complexo do Alemão, por exemplo, debaixo de uma Via Láctea cravejada de balas, é impossível ouvir qualquer coisa diferente dos “bondes” locais. Coitado do Bilac. Ele vem capengando desde o tempo em que se ensinava Educação Moral e Cívica nas salas de aula. Isso vale para todo um currículo xarope e equivocado que as escolas – ainda hoje! – insistem em atulhar nos hormônios da garotada. Cazzo!

Em 1986, me meti numa bosta de uma faculdade de agronomia para nunca mais ter de ouvir falar em Alphonsus de Guimarães e Cruz e Sousa. Se, naquela época, alguém tivesse me avisado que Cesare Pavese existia, e que havia escrito um livro lindo, cujo título é O diabo nas colinas... bem, aí as coisas teriam sido muito diferentes. Talvez eu fosse um engenheiro agrônomo.

E provavelmente não teria de republicar a crônica que escrevi há oito meses, a mesma crônica que publicarei nos próximos anos, porque a época cuja a eternidade era feita de broquéis – Porco Dio! – já passou!

Professor Carlos Eduardo, lamento dizer, mas o senhor é dispensável na vida dos seus alunos. Eles é que são a bala perdida.

Ou fazemos uma revolução no currículo escolar, ou a molecada vai aprender “matérias” mais interessantes com a concorrência. Alguém tem que dar a ficha pra garotada: he nets to know that.

“Iracema, a virgem dos lábios de mel” nunca foi exatamente um tesão de leitura. Quem é que não sabe que o autor de “Crônica de um amor louco” é – no mínimo – “mais indicado” que um José de Alencar aos dezesseis anos? Bukowski contra o crime.

O primeiro livro da minha grade curricular seria Factótum, dele mesmo, do velho Buk. Quando ele, aos 16 anos, enfia um uppercut (direto no queixo) no Pai e sai de casa. É isso, em suma, o que está faltando, meu caro professor Carlos Eduardo, para que seus alunos prestem atenção em você. Anota aí:
Dias em Clichy, do Henry Miller, pra garotada entender o que é solidão e amizade. Depois as crônicas de Nelson Rodrigues, A menina sem estrela, A cabra vadia, O reacionário, todos os volumes de crônicas, e seu romance, O casamento (o teatro, não – de jeito nenhum). Um único livro de John Fante, Pergunte ao pó, e muito Carlinhos Oliveira, para desopilar. Ana Cristina César para as putinhas ilustradas. Caio Fernando Abreu pras bichinhas esotéricas. E Hilda Hilst pras bichinhas inteligentes. Diana caçadora, de Márcia Denser, para os vampiros em geral.

Tem as biografias. Não é um gênero que eu aprecio, inclusive acho um desrespeito com o falecido, uma interferência desnecessária, mesmo assim biografias seriam legais pra garotada, a começar pela biografia de Ana C., escrita por Ítalo Moriconi, e a biografia de Carlinhos Oliveira, escrita por Jason Tércio, por exemplo. Até Ruy Castro, que é um jornalista convincente (jamais vai ser escritor...), quebraria um grande galho com seus livros que tratam de Bossa Nova. Um pouco de Bataille junto com Cioran faria um estrago legal e irreversível no espírito da garotada... mas só um pouco, é bom não abusar demais aos dezesseis. Digamos A história do olho, de Bataille, e o Breviário da decomposição, do escritor do romeno (será? acho que não...). Esqueçam Cioran, esse autor só depois dos quarenta. Vamos em frente: Marquês de Sade poderia ser uma boa distração. Cortázar, sim. Jorge Luis Borges, não. Borges somente depois dos trinta. Machado idem. Kafka ibidem. Ah, lembrei do George Orwell, nada de A revolução dos bichos... isso já encheu o saco. Talvez o instigante Ensaio dentro da baleia e Na pior em Paris e Londres, esses dois livros seriam mais do que o suficiente aos dezesseis. Graciliano Ramos, não. Ou melhor, somente Angústia do Graciliano, penso que Vidas Secas é um livro meio chato pra molecada.

Raquel de Queiroz me deixa indeciso, mas ela escreveu ótimas crônicas no Estadão: portanto, as crônicas da Raquel, os romances, não. O ventre, do Cony. De Dostoiévski apenas Memórias do subsolo... que é fininho e tem quase tudo lá dentro, nesse livro o leitor encontra os Irmãos Karamazov, Crime e Castigo e O jogador também, está tudo lá. O que mais? Um autor uruguaio palatável e comovente ao mesmo tempo, que é o Mario Benedetti, e um húngaro essencial aos dezesseis: Sandór Marai, com o seu As brasas.

Claro, que não devemos esquecer os grandes lugares-comuns: The catcher in the rye e On the road essa dupla é impagável, Salinger & Kerouac são inevitáveis e absolutamente necessários aos dezesseis, e em qualquer idade... Jorge Amado nem com onze anos: é muito ruim, escreve feio, e escreve mal. Mas os adolescentes não poderiam deixar de ler Kawabata, A casa das belas adormecidas e Tanizaki também. Desse segundo japa, sugiro A chave e Diário de um velho louco. Dos contemporâneos, os meus amigos Marcio Américo, e seu Meninos de Kichute, que é imprescindível, as crônicas do Gutemberg Blues, do Marião Bortolotto, e Juliano Garcia Pessanha que, igualmente, escreveu um livro fundamental, Certeza do agora... acredito que a molecada se interessaria por Thomas Bernhardt e Hermann Brock depois de ler o livro do Juliano Pessanha (embora Bernhadt e Brock sejam muita areia pro caminhãozinho aos dezesseis...) mas que se dane, que esse interesse despertasse vinte anos depois, porque um livro leva a outro, e isso não tem fim. Apenas não podemos substituir Luiza Brunet por Machado de Assis, aos dezesseis não, e... pensando bem, muito menos no meu caso, às vésperas de completar 43 anos. Luiza Brunet continua linda, apesar das granadas que explodem no pátio da escola.

Se não for isso, Prof. Carlos Eduardo, “a concorrência” estará logo ali, salivando, pronta a cooptar seus alunos. Basta um tênis Nike. Uma rima, um grito de ordem. Se o garoto não tomar gosto por Bukowski, é capaz de virar mensageiro de Deus, e pastor da comunidade, isto é, vai virar bandido mesmo, e não vai sobrar nenhum carinho para dedicar ao mestre. Sidney Poitier dançou. Portanto, meu caro professor, relaxe, tome muito cuidado e – se possível – ria com seus alunos, antes de chorar.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.

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