Crônica

Olhos de cais

Marcelo Mirisola*
Já havia abandonado uma ilha que tinha nome de mulher, abandonei uma cabeleireira que foi meu piçirico e que morreu de Aids nos anos noventa, o gosto por lugares bregas e queijinhos derretidos, havia abandonado uma vida de miojo e casa de praia e até uma gata rajada, Ana C., que morava na churrasqueira dessa casa, eu abandonei; jamais tive vocação para ser enseada, eu tinha de ir antes de eu mesmo virar uma carcaça de cavalo abandonado numa praia deserta – ao sabor das ondas, não. De jeito nenhum. Traí a paisagem e também abandonei amigos queridos e equivocados, e a impressão era de que os havia gastado, tanto as situações como os lugares, lugares onde eu havia imaginado passar o resto dos meus dias, acabaram para mim, sumiram da mesma forma que apareceram, e quando eu usufruía deles, era sincera e displicentemente para sempre; assim, consegui trapacear dois diabos quando enganava a mim mesmo, e também levei uma escuna a pique, eu sei que afundou, juro!, mas eu estava longe, nem o ocaso da escuna, nem Ana C., a gata abandonada na churrasqueira, nem o beijo que ganhei de uma cega no ponto de ônibus, nem a solidão dos demônios abandonados na encruzilhada, nada havia sido o suficiente para me segurar, sempre parti e os bares quebravam quando eu já tinha dado o pinote, desavisado, eu, o mochileiro metafísico, seguia o caminho e até dos crimes que cometi ao longo dessa jornada fui absolvido, por desatenção, sim, inclusive havia cumprido várias penas, e havia me regenerado somente para poder reincidir em crimes muito mais graves, e seria condenado do mesmo jeito: sem me dar conta, inopinado, alheio (como se isso fosse possível, como se não fosse comigo); para mim, bastava jogar minhas tralhas na mala e partir, assim deixei para trás o pior e o melhor dos meus dias, e escrevi tudo isso para esquecer de mim mesmo ou para zerar as coisas e começar tudo outra vez. Eu era um Sísifo em estado de graça e debochado, e sempre tive uma péssima memória. Esse era o meu salvo-conduto, o caminho estava aberto, e eu podia seguir em frente. Também fui abandonado, bom que se diga. Até nesse momento (sem saber) eu seguia meu caminho, porém parti a contragosto, e percebi – pela primeira vez – que a coisa era comigo, afinal.

A lista de abandonos é imensa, quase sempre fruto da escolha sabida e antecipada de antemão, não só da minha parte, mas também da escolha dos outros que me deixaram no meio do caminho. Vários abandonos, aliás, frutificaram desses enganos – aqueles de encontros que jamais deviam acontecer – e que mereciam mesmo ser deixados na poeira dos dias e esquecidos para sempre, como foram. Embora tivesse frutificado. Tive encontros que eram continuidade desses abandonos, e partidas que eram prenúncio de novos abandonos. Mas isso tudo tinha uma razão de ser. Esse “ir” – eu acreditava – existia em razão de dois grandes encontros.

Ou dois equívocos. O primeiro encontro foi marcado com o garoto triste que cavalgava faxineiras, e olhava para baixo. Ele sabia (mas não tinha como auferir) que um dia se transformaria em seu próprio carrasco, ou biógrafo, tanto faz. Esperou trinta anos. E fez a parte dele: assassinou quem mais amava, e a si mesmo, e enfim, encontrou o adulto que desde cedo o envelhecia e o assombrava impiedosamente. O garoto pressentia que nessa ocasião fecharia o ciclo, e morreria em paz. Estava enganado, claro. Encontrou comigo. Virou um fantasma da própria assombração, e sua condenação foi não ter morrido. Pobre garoto. A partir daí apostou/apostamos todas as nossas fichas no segundo encontro. E aqui não dá para deixar de ser brega, patético e açucarado. Mas é o fato: eu sempre fui, eu “ia” e vou?... ao encontro de um grande amor. Éramos, eu e o garoto, somados a uma fraude que tinha de ser vivida, e, no limite, tinha de ser provada até os estertores de um novo equívoco.

A diferença é que agora não mais acertaríamos as contas com fantasmas e fraudes consumadas, teríamos alguém de verdade no meio do caminho para abandonar. Uma coisa que me perguntei, e que o leitor deve estar se perguntando agora é o seguinte: como é que eu podia saber que dessa vez era mesmo de verdade?

Vou fazer um pequeno parêntese (quase um hai cai) e tentar ser o mais ululante possível. Ela fritou rabanadas pra mim no Natal de 2006. Entenderam?

E tem/ou tinha os olhos de cais: desde a primeira vez que a olhei, vi a despedida que me denunciava em seus olhos, aqueles olhos que Vinícius de Moraes tão bem descreveu: “Que olhos os teus/ São cais noturnos, cheios de adeus (...) quantos saveiros, quantos navios, quantos naufrágios, nos olhos teus”.

**********

O restaurante quase vazio. Apenas eu, um garçom careca que dobrava guardanapos, e um casal de namorados à minha frente. Pensei na letra do Vinicius, e tentei em vão afastar João Bosco, que interferia na paisagem. Mas era tarde demais, e a interferência não era tão descabida assim – nesse momento divisei luzes vermelhas sobre bóias amarelas: uma espécie de sinalizador em alto-mar, que afinal cumpria sua função. Orientar os afogados. Tive a convicção de que estava irremediavelmente perdido naquele restaurante. Triste como tinha de ser porque estava num cais que só existia em função da despedida que eu havia inventado para mim mesmo. Várias imagens me ocorreram. Um veleiro bêbado que partira e que havia me deixado em vão, sem um cais para voltar. Em seguida, eu era a própria onda e a espuma da minha memória. Sem lastro, e com o cardápio na mão. Isso tudo e mais gaivotas suicidas que se espatifavam nas vidraças do Planeta’s, o restaurante em questão – na esquina da Augusta com a Martinho Prado.

O casal de namorados à minha frente. Os dois se bicavam o tempo inteiro, um passava manteiga no pão do outro, maior grude. Pensei: “Vai acabar”. Depois vão se aborrecer, e aí – se houver amor mesmo – amanhã o sujeito vai estar aqui na minha cadeira, e a mulher de preto terá ido embora, de táxi. E então, num lugar não tão distante, o fantasma da mulher, linda e de óculos escuros, fará perguntas tolas a si mesma. Perguntas distraídas, que por breves momentos de entorpecimento serão trocadas por um sapato caríssimo parcelado em cinco vezes no cartão de crédito. Mas era entorpecimento, não era felicidade. Isso quer dizer que, se não fosse a cara de besta que ensaiaria na hora de pedir um musse de chocolate para a mocinha do outro lado do balcão, ela quase poderia se dar por satisfeita. Um lindo sapato numa sacola cheia de compras. O que mais uma mulher poderia querer? Ora, o lugar-comum. A felicidade, e mais um musse de chocolate.

Claro que ela não ia obter nenhuma resposta às perguntas tolas que fez a si mesma. Nesse momento – no terceiro musse – remoeria saudades e um bocado de mágoas. Se houvesse amor e se houvesse beleza, as mágoas seriam quase proporcionais às saudades, acho que sim.

Ah, Cacá. E lembrei da última vez que jantamos naquele mesmo restaurante, curiosamente na mesma mesa em que o casal – entre um pão com manteiga e uma azeitona – se mordia feito dois chimpanzés.

Naquela ocasião, lembro como se fosse hoje, Cacá me cobrara: você nunca mais falou aquilo. “Aquilo” o quê? Do que será que ela reclamava?

Nós – nem em momentos de febre alta – havíamos passado manteiga um no pão do outro. A única coisa parecida foi o mel que Cacá despejara no meu waffles de chocolate. Se bem me lembro, ela estragou a parte preferida do meu café da manhã. O que ela queria ouvir ?

---- Você é um charlatão – me acusou.

Fiquei todo orgulhoso de ser acusado de “charlatão”. Mas o que ela queria ouvir?

Cadela, putinha... abre as pernas que eu vou te arregaçar? Te amo?

Nada disso. De modo que fui igualmente generoso nos xingamentos e nos mimos, até chegar a um ponto em que meu repertório praticamente esgotou-se. Nesse ponto, ela foi enfática: “Lembre-se que você é um cara romântico, mas não é melado”.

Ah, claro que sim, a tatuagem. A frase gravada bem ali no último ossinho do cóccix. A frase que eu – assim, sem querer – havia falado junto ao pedido de outro waffles: “Por favor, garçom, traz outro waffles para mim: ‘quem ama não pechincha’”.

O fato de eu ter lembrado disso na hora que vi o fulano reclamando da conta, me sugeriu um belo e definitivo e inapelável final de caso para eles. Desejei pôr-do-sol e gaivotas para o casal.

--- Os olhos teus são cais noturnos, cheios de adeus.

Em seguida, para contemplar o naufrágio do casal que afundava bem ali na minha frente, chamei o garçom e perguntei o resultado do jogo do bicho, e ele – já prevendo outro naufrágio – me sugeriu mais uma garrafa de vinho. Só se for tinto e seco, respondi.

E pensei comigo mesmo: podia ser a última.

*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.

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