Opinião

Em 2016, celebraremos o Natal sob o signo da xenofobia e do jihadismo

Demétrio Magnoli
Cerca de 4.000 anos atrás, quando Abraão subiu um morro no Oriente Médio com a intenção de sacrificar seu único filho legítimo ao Deus que adorava como superior aos outros deuses, nasceu a tradição da fé.

Naquele evento encontra-se a fonte lendária das três religiões abraâmicas –judaísmo, cristianismo, islã– e, com elas, da primeira versão do conceito de igualdade entre os seres humanos.

Cruzadas, jihad, "Grande Israel". Associam-se, geralmente, as religiões monoteístas ao impulso da guerra de conquista. Porém, antes de tudo, elas assinalaram um extraordinário salto civilizacional.

A tradição da fé soldou extensas comunidades políticas pois rompeu barreiras sociais até então intransponíveis. Se o mais humilde dos súditos e seu soberano compartilham o Deus único, leem o mesmo Livro e curvam-se juntos aos mesmos mandamentos, então eles são essencialmente iguais.

Dessa limitação implícita do poder tirânico surgiu o embrião da ideia de direitos civis.

A versão moderna da igualdade foi estabelecida pelo Estado-Nação, por meio do contrato de cidadania. A soberania deslocou-se para o povo, eliminando-se a aura de distinção que cercava o governante.

Os cidadãos não se distinguem por suas opções de fé: na base do contrato político está a separação entre Estado e Igreja e sua contrapartida, que é a liberdade de religião. Os direitos civis aparecem explícitos, elencados na legislação e assegurados por tribunais independentes.

As duas versões da igualdade, a ancestral e a moderna, têm seus lados sombrios. A irmandade religiosa exclui o "infiel"; a irmandade nacional, o "estrangeiro".

A Cruzada ou a jihad, assim como o nacionalismo exacerbado, espreitam na trama lógica das comunidades tecidas pela fé e pela nação. Auschwitz reuniu todos os demônios, sintetizando a pulsão exterminista do nazismo, que identificou o judeu ao "estrangeiro". Diante das imagens da barbárie, em 1948, costurou-se uma terceira versão do conceito de igualdade.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos impugnou as perseguições religiosas, raciais, étnicas e nacionais pela proposição de uma "cidadania universal".

Seus autores inspiraram-se nas declarações de direitos ocidentais (inglesa, americana e francesa) e, ainda, em tradições da fé de diversos povos. "Nunca mais": a afirmação de uma humanidade comum funcionaria, esperavam eles, como uma barricada de última instância contra os massacres e o genocídio.

Celebraremos o Natal sob os signos da xenofobia, do jihadismo, da islamofobia e de Aleppo.

Na Síria, 80 anos depois de Guernica, uma cidade em ruínas alerta-nos para a persistência da barbárie –e para as implicações do predomínio da "realpolitik".

Amparado pela Rússia, no vácuo aberto pela inércia do Ocidente, Bashar Assad provou que os tiranos ainda mantêm a prerrogativa de massacrar seu próprio povo.

"Morte ao cristão", "deportemos os imigrantes", "proíba-se a burca": no Oriente Médio, na Europa e nos EUA, as vozes dos extremistas identificam o inimigo no "infiel" ou no "estrangeiro", instaurando uma cartografia do ódio. A simplificação identitária do discurso político apela às faces sombrias do nacionalismo e da religião. Tempos de jihad e terror: no lugar da tradição abraâmica, os fanáticos invocam a exclusividade do seu próprio profeta.

Tempos de Trump, Putin, Erdogan, Le Pen: no lugar do contrato civil, os nativistas invocam o "direito do sangue" e a primazia da "cultura". Há pouco, quase nada, a celebrar nesse Natal de 2016.

Mesmo assim, os descrentes, como eu, não precisam juntar-se aos resmungos dos novos ateístas ou à fúria dos liberais "libertários". Podemos, em vez disso, erguer um brinde à versão inicial, religiosa, do conceito de igualdade –com a condição de brindar também às duas versões modernas, que a corrigem e completam.

Feliz Natal, apesar de tudo. 

Original aqui

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