Opinião

Fim do mundo não é o fim de tudo

Gabeira
Fim de ano, fim do mundo com a delação da Odebrecht, estradas remotas, poucas conexões. Os cientistas estão trabalhando para pesquisar a região do cérebro onde se depositam as memórias recentes. Não sei que lugar ocupará 2016 em nosso escaninho, sei apenas que o cérebro é elástico, e viver no Brasil é educar-se para a complexidade.

A guerra na Síria, a crise de emigração na Europa, o caricato gabinete de Trump — tudo isso indica que as coisas no mundo também não foram bem em 2016. E o que é pior: são problemas que se desdobram no ano que entra.

Nesse carrossel da transição para 2018 é bom pelo menos ter em mente os objetivos principais: recuperar a economia e restabelecer, através de uma renovação, ainda que modesta, os vínculos da política com a sociedade.

Isso de estabelecer prioridades é muito pessoal. Existem milhares de outras visões. É apenas um exercício no caos.

Na verdade, a delação do fim do mundo marca talvez o período final do processo que se iniciou com o movimento pelas Diretas. Os próprios apelidos dos políticos nas planilhas da Odebrecht mostram como a empresa, de uma certa forma, os condenava. Todo Feio, Gripado, Caranguejo — parecem nomes das páginas policiais de antigamente.

É toda uma época que se encerra com o fim da aliança entre empreiteiras e o sistema político. Uma das vantagens é que o Brasil poderá chegar a um planejamento mais adequado às nossas necessidades, porque, na verdade, ele foi também sequestrado pelo esquema de corrupção. A outra vantagem seria julgar e punir os culpados para que as eleições de 2018 se fizessem sem eles. Um atraso poderá torná-las mais distantes da sociedade.

As ruas mostraram o que querem. Elas apoiam a Lava-Jato. O próprio governo admite que a operação deve ir até onde os fatos a levem. Como fazer com que a Lava-Jato não seja um obstáculo para a recuperação econômica? Temer deu a pista: celeridade. O importante é definir como a celeridade vai surgir, depois de tanta lentidão. O nó é o Supremo. Se não se convencer da singularidade da situação, vai tratá-la como todas as outras. E continuaremos aos solavancos.

Um ano como o de 2016 num ritmo de roda-gigante nos traz uma nostalgia da estabilidade. Não apenas por motivos econômicos, mas também no nível individual, imersão em projetos de longo alcance, meditação para puxar o fio da meada, desde quando o atual processo democrático começou.

A tarefa de recuperar a economia sob os ventos da Lava-Jato, jogando gente no mar para não se afogar também, não é fácil. É uma transição em que se entrelaçam a maior operação da História com a crise econômica mais profunda. A única forma de alcançá-las é manter os dois polos. Um deles sozinho não consegue fazer a passagem.

A celeridade, que depende do STF, atenua os possíveis atritos da Lava-Jato com o esforço de recuperação econômica. Estrategicamente, os dois polos são aliados. A desmontagem do esquema de corrupção no governo aumenta a credibilidade do país, torna-o mais atraente para investimentos sérios. O simples estancamento da sangria na Petrobras deu à empresa uma chance de soerguimento. E até trouxe de volta uma boa parte do dinheiro roubado.

Quando digo que o fim do mundo não é o fim de tudo, penso na própria contribuição que a Lava-Jato vai trazer. A delação do fim do mundo não é o fim de tudo. Deixará mortos, feridos, escoriações, fraturas expostas. Mas é também nos escombros que vai sobreviver uma parte do Congresso vital para o segundo momento.

A História não começa do zero. A renovação que surgir da sociedade contará com uma experiência acumulada até dominar os complicados ritos do Congresso.

A esta altura, eu mesmo me pergunto se combinei com os russos ao traçar esse cenário. Um quadro de economia funcionando, um Congresso mais próximo da sociedade, no entanto, não são um sonho. São uma possibilidade real que vislumbro nesse caleidoscópio visto das estradas de Minas, das margens do Solimões na fronteira com a Colômbia.

Não posso acreditar que um país tão rico e diverso não consiga sair dessa situação pantanosa em que a elite política o colocou. Se for um delírio, que valha apenas como desejo de Ano Novo.

O que me conforta é que para mim a experiência democrática iniciada com as Diretas se esgotou. Tudo o que acontece pode ser visto não só como escombros de um período, mas também como os primeiros passos de transição. Algo se move, nem sempre no ritmo de minha visão otimista, mas se move no meio de muita fumaça.

Original aqui

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