Opinião
Nó de marinheiro
Luiz Werneck Vianna
Deram um nó de marinheiro na política e na economia brasileiras e, ao que parece, ninguém se mostra capaz de desatá-lo. Quem se tem arriscado na empresa, longe de afrouxar o aperto excruciante que ele exerce, logo é obrigado a reconhecer a vanidade dos seus esforços, ao constatar que, malgrado seu empenho, ele o deixou ainda mais ajustado. O vice-presidente da República, Michel Temer, é o caso mais recente, e pelo andar da carruagem, não será o ultimo.
Amarrada por esse nó que compromete as esperanças de dias melhores que vinha acalentando desde a democratização do País, a sociedade, em movimentos contraditórios, recorre às ruas em manifestações de protesto, quando clama pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff – solução que depende da ação de um Parlamento a que quase todos dão as costas –, sem que faltem atos de massa em defesa do mandato presidencial, que, por sua vez, são críticos das políticas governamentais.
Há de tudo nessa barafunda em que fomos envolvidos por nossos atuais governantes. Persiste entre eles a influência da social-democracia, embora ninguém a defenda abertamente, assim como a do neoliberalismo – o programa Bolsa Família tem aí sua inspiração – e a do nacional-desenvolvimentismo do regime militar com seu capitalismo politicamente orientado, em certas versões sob maquiagem chinesa.
Nas ruas, quando ocupadas por movimentos sociais externos ao mundo do trabalho, designados pelo prefixo sem – sem-terra, sem-teto –, medra em surdina um pasticho do nacional-popular no estilo dos anos finais do regime de 1946, cujo cerne, como notório, foi ocupado pelo sindicalismo operário – hoje, a uma boa distância dele. Suas vozes são acolhidas nos palácios apenas pelo motivo de que provêm de um alegado exército de reserva, mesmo que dissonantes do discurso e das práticas dos dirigentes do partido hegemônico no governo, como se faz exemplar nas políticas oficiais reinantes no agronegócio e na construção civil, joias da coroa de suas administrações. Embora marginais, seu ruído ainda mais extrema a barafunda.
O pragmatismo sem princípios, característico da era Lula em seus momentos de fastígio, que flertou com todos esses sistemas de orientação, encontrou seu limite neste começo do segundo mandato da presidente Dilma. Sem as escoras dessa referência, antes considerada como obra de talento do seu fundador, e na ausência de qualquer outra, o espírito tateia entre as trevas. Em meio a ruínas do nosso sistema político, devastado pela Operação Lava Jato, ainda em curso, vive-se um cotidiano de sobressaltos à sombra de uma guilhotina que ameaça as chefias dos nossos Poderes republicanos, sem que se possa prever como nascerá o dia de amanhã.
Antes que se diga que mais vale um fim com terror do que um terror sem fim, com as esperanças ao chão, uma economia em recessão e que nos alcance a ameaça de uma crise com a gravidade da grega, em nome da defesa da democracia política, que tanto nos custou, a política e os políticos não podem mais retardar uma intervenção saneadora que somente pode vir deles. Não é à toa que em lugares obscuros da nossa sociedade, à direita e à esquerda, já se fale a linguagem das armas e no recurso a exércitos.
Não caminhamos até aqui, que foi muito, para morrer na praia. O sistema judiciário, em particular nas suas bases, mais do que investigar e punir crimes contra a administração pública tem exercido, ao longo destes meses, uma ação pedagógica no sentido de valorizar a República e suas instituições, cujos resultados já são tangíveis e sem retorno. Mas estaremos perdidos se acreditarmos que juízes são portadores de uma missão messiânica de salvação dos nossos males nacionais e não procurarmos na política os remédios que permitam que a sociedade se anime a buscar novos rumos.
Inclusive porque, como advertia o bardo, a vida não para, os indicadores econômicos disparam estridentes sinais de alarme e, no próximo ano, estão agendadas eleições municipais, terreno fértil para os cavaleiros da fortuna que ambicionem se aproveitar desse deserto de ideias e de homens de valia a que se tem reduzido nossa vida política. O nó que nos ata, na emergência em que nos encontramos, desaconselha a atitude daqueles lavradores que, sem amanhar a terra, mantêm o olhar fito no céu esperando pelas chuvas, como temos ficado com as notícias que nos vêm dos tribunais. O obituário desse presidencialismo de coalizão bastardo que temos praticado não pode mais demorar a ser lavrado, e com ele essa parafernália de partidos políticos sem vida própria, cartórios, a maior parte deles, de interesses particularistas.
Sem uma prévia remoção do entulho que trava o processo de formação de uma vontade democrática, em vez de cortar o nó que nos imobiliza, pode-se livrar o caminho para que velhos e mal resolvidos antagonismos, equilibrados secularmente por elites políticas treinadas, mesmo sem o saber, como Monsieur Jordan fazia prosa, nas artes conservadoras de uma clássica revolução passiva – o ex-presidente Lula incluído –, entrem em desequilíbrio. Foi-se o tempo, de infausta memória, de “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
Para o relógio da política democrática a hora é a da Carta de 88, pois é a partir dela e do aperfeiçoamento de suas instituições que se pode divisar uma saída para a gravidade da crise atual, não apenas política, mas também econômica, ético-moral e de rumos para o País. Fernando Gabeira, em recente e brilhante artigo neste jornal, utilizou-se da metáfora do ciclista que, para não cair, precisa manter seu veículo em movimento. Sem movimento não se escapa desse nó que nos constrange, e o mais seguro é o que ganhar impulso no campo da política. Pedalar é preciso, mas pedaladas em falso podem desequilibrar não apenas o ciclista, como também o País.
Luiz Werneck Vianna é sociológo da PUC-Rio
Original aqui
Twitter
Luiz Werneck Vianna
Deram um nó de marinheiro na política e na economia brasileiras e, ao que parece, ninguém se mostra capaz de desatá-lo. Quem se tem arriscado na empresa, longe de afrouxar o aperto excruciante que ele exerce, logo é obrigado a reconhecer a vanidade dos seus esforços, ao constatar que, malgrado seu empenho, ele o deixou ainda mais ajustado. O vice-presidente da República, Michel Temer, é o caso mais recente, e pelo andar da carruagem, não será o ultimo.
Amarrada por esse nó que compromete as esperanças de dias melhores que vinha acalentando desde a democratização do País, a sociedade, em movimentos contraditórios, recorre às ruas em manifestações de protesto, quando clama pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff – solução que depende da ação de um Parlamento a que quase todos dão as costas –, sem que faltem atos de massa em defesa do mandato presidencial, que, por sua vez, são críticos das políticas governamentais.
Há de tudo nessa barafunda em que fomos envolvidos por nossos atuais governantes. Persiste entre eles a influência da social-democracia, embora ninguém a defenda abertamente, assim como a do neoliberalismo – o programa Bolsa Família tem aí sua inspiração – e a do nacional-desenvolvimentismo do regime militar com seu capitalismo politicamente orientado, em certas versões sob maquiagem chinesa.
Nas ruas, quando ocupadas por movimentos sociais externos ao mundo do trabalho, designados pelo prefixo sem – sem-terra, sem-teto –, medra em surdina um pasticho do nacional-popular no estilo dos anos finais do regime de 1946, cujo cerne, como notório, foi ocupado pelo sindicalismo operário – hoje, a uma boa distância dele. Suas vozes são acolhidas nos palácios apenas pelo motivo de que provêm de um alegado exército de reserva, mesmo que dissonantes do discurso e das práticas dos dirigentes do partido hegemônico no governo, como se faz exemplar nas políticas oficiais reinantes no agronegócio e na construção civil, joias da coroa de suas administrações. Embora marginais, seu ruído ainda mais extrema a barafunda.
O pragmatismo sem princípios, característico da era Lula em seus momentos de fastígio, que flertou com todos esses sistemas de orientação, encontrou seu limite neste começo do segundo mandato da presidente Dilma. Sem as escoras dessa referência, antes considerada como obra de talento do seu fundador, e na ausência de qualquer outra, o espírito tateia entre as trevas. Em meio a ruínas do nosso sistema político, devastado pela Operação Lava Jato, ainda em curso, vive-se um cotidiano de sobressaltos à sombra de uma guilhotina que ameaça as chefias dos nossos Poderes republicanos, sem que se possa prever como nascerá o dia de amanhã.
Antes que se diga que mais vale um fim com terror do que um terror sem fim, com as esperanças ao chão, uma economia em recessão e que nos alcance a ameaça de uma crise com a gravidade da grega, em nome da defesa da democracia política, que tanto nos custou, a política e os políticos não podem mais retardar uma intervenção saneadora que somente pode vir deles. Não é à toa que em lugares obscuros da nossa sociedade, à direita e à esquerda, já se fale a linguagem das armas e no recurso a exércitos.
Não caminhamos até aqui, que foi muito, para morrer na praia. O sistema judiciário, em particular nas suas bases, mais do que investigar e punir crimes contra a administração pública tem exercido, ao longo destes meses, uma ação pedagógica no sentido de valorizar a República e suas instituições, cujos resultados já são tangíveis e sem retorno. Mas estaremos perdidos se acreditarmos que juízes são portadores de uma missão messiânica de salvação dos nossos males nacionais e não procurarmos na política os remédios que permitam que a sociedade se anime a buscar novos rumos.
Inclusive porque, como advertia o bardo, a vida não para, os indicadores econômicos disparam estridentes sinais de alarme e, no próximo ano, estão agendadas eleições municipais, terreno fértil para os cavaleiros da fortuna que ambicionem se aproveitar desse deserto de ideias e de homens de valia a que se tem reduzido nossa vida política. O nó que nos ata, na emergência em que nos encontramos, desaconselha a atitude daqueles lavradores que, sem amanhar a terra, mantêm o olhar fito no céu esperando pelas chuvas, como temos ficado com as notícias que nos vêm dos tribunais. O obituário desse presidencialismo de coalizão bastardo que temos praticado não pode mais demorar a ser lavrado, e com ele essa parafernália de partidos políticos sem vida própria, cartórios, a maior parte deles, de interesses particularistas.
Sem uma prévia remoção do entulho que trava o processo de formação de uma vontade democrática, em vez de cortar o nó que nos imobiliza, pode-se livrar o caminho para que velhos e mal resolvidos antagonismos, equilibrados secularmente por elites políticas treinadas, mesmo sem o saber, como Monsieur Jordan fazia prosa, nas artes conservadoras de uma clássica revolução passiva – o ex-presidente Lula incluído –, entrem em desequilíbrio. Foi-se o tempo, de infausta memória, de “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
Para o relógio da política democrática a hora é a da Carta de 88, pois é a partir dela e do aperfeiçoamento de suas instituições que se pode divisar uma saída para a gravidade da crise atual, não apenas política, mas também econômica, ético-moral e de rumos para o País. Fernando Gabeira, em recente e brilhante artigo neste jornal, utilizou-se da metáfora do ciclista que, para não cair, precisa manter seu veículo em movimento. Sem movimento não se escapa desse nó que nos constrange, e o mais seguro é o que ganhar impulso no campo da política. Pedalar é preciso, mas pedaladas em falso podem desequilibrar não apenas o ciclista, como também o País.
Luiz Werneck Vianna é sociológo da PUC-Rio
Original aqui
Comentários