Coluna do Mirisola

Feliz 2010 na frente da tevê

“Às vezes reclamo da minha vida de escritor, mas – pensando bem - existem profissões muito mais cruéis. Tem gente que trabalha em plataformas de petróleo no alto mar, outros trabalham nas novelas do Manoel Carlos”

Marcelo Mirisola*

Natal na frente da tevê. Todo ano é assim: não posso deixar de ir visitar minha mãe. Que mora na Serra da Canastra, onde nasce o Rio São Francisco. A viagem é longa e cansativa, sobretudo para um cara que vai de ônibus convencional. São 18 horas. Mas vale a pena pelos rangos, porque meu pai também está lá e porque todo ano tem sobrinho novo na parada.

Dessa vez conheci Helena, que adorou o malabarismo que improvisei com bergamotas e tomates. A novidade das novidades é que agora tem uma lan house na cidade – que funciona quando não chove. Fez um dia de sol e outros quatro de ressaca, dilúvio e barriga cheia. Na brecha do sol, peguei uns carrapatos no São Francisco, vi um pato mergulhão (coisa rara) e fotografei um casal de maritacas na casa do João de Barro. O mundo está mudado. De resto, vi muita televisão.

A festa é sua, a festa é nossa e é a festa da cooptação do rap – não bastasse a Nike – agora a Rede Globo também comprou a franquia das quebradas. Robertão ameaçou ficar doente, mas estava lá firme e forte fazendo dueto com os bregas sertanejos e a Ana Carolina, a mulher gerúndio. Também fui obrigado a ver a novela do Manoel Carlos. Suspeito que dessa vez o “Maneco” conseguiu escrever a história mais chata de sua carreira. Minha mãe garante que ele vai se aposentar – leu em alguma revista de fofoca.

Fiz uns cálculos e cheguei a conclusão de que a fofoca deve ter algum fundamento. Manoel Carlos tem quase oitenta anos e o José Mayer terá mais ou menos isso daqui a três anos, que é o tempo de revezamento dos autores das Oito na Globo. Daí que o Maneco resolveu encerrar com chave de ouro.

A protagonista da novela é uma linda garota mimada que sofreu um acidente e foi parar numa cama, tetraplégica, só mexe o pescoço e chora o tempo inteiro. Compreensível. Qualquer um que tivesse que trabalhar num lugar desses choraria baldes de lágrimas mexicanas. Às vezes reclamo da minha vida de escritor, mas – pensando bem - existem profissões muito mais cruéis. Tem gente que trabalha em plataformas de petróleo no alto mar, outros trabalham nas novelas do Manoel Carlos: deve ser difícil ter que falar aqueles diálogos e não poder nem mexer os ombros. Só chorando e muito.

Com a graça dos céus, não acompanhei os primeiros capítulos e a agonia da garota que – imagino - deve se prolongar até o final do dramalhão. Então perguntei pra dona Marietta: “Mãe, não tem coisa melhor pra ver na tevê?” Ela me mostrou um treco chamado “A fazenda”.

Ah, o natal. Nenhum livro para ler: eu sou uma besta mesmo. Na viagem devorei Pilatos do Cony, a meu ver o melhor dele junto com O Ventre e também acabei de ler A vida secreta do Senhor de Musashi, do Tanizaki, ou seja, cheguei pleno de taras e aberrações deliciosas num lugar onde a Internet não funciona quando chove. Sobrou “Viver a Vida” do Manoel Carlos.

Fazer o quê? Ora, pensar. E quando é natal, eu penso de barriga cheia e cachaça nos cornos. Tenho achaques, febre alta. Idéias fora do lugar, elucubrações diabólicas. Se eu não me seguro, começo a fazer rimas, latir pra lua, dessa vez desejei Matilde Mastrangi em 1982. Não tem jeito.

Na febre, além de la Mastrangi, resolvi que ia ajudar o Manoel Carlos a sacudir o marasmo de “Viver a vida”. Corri pra sala, e pedi para minha mãe me contar a história desde o começo. Não precisava, é claro. Mas eu faço questão de detalhes porque sou um profissional, e não ia me aventurar a escrever bobagem sem fundamento. Merda, aqui, só fundamentada. Pois bem. Peguei a calculadora, e percebi que até o final desse ano, a linda garota tetraplégica começará a “aceitar sua nova condição” de linda garota tetraplégica, e que, afinal de contas, o nome do dramalhão é “Viver a vida”. Se é assim, ela vai ter que necessariamente redescobrir o amor!

Lindo, né? No capítulo que acompanhei, Maneco já havia providenciado um passeio na orla do Leblon: linda garota tetraplégica já ensaiava um novo ponto de vista e falava para a mãe (que é a Liliam Cabral, coroa bonitona que ainda dá um bom caldo) que parecia ser a primeira vez que passava por aquele lugar. Esse Maneco hein? Uma vez me disseram que ele é o Balzac brasileiro. Ah, tá. Esse país é surpreendente.

Manoel Carlos é o nosso Balzac, Nando Reis é o nosso Cat Stevens, Mano Brown é o nosso Che Guevara, Xuxa é a Madre Teresa de Calcutá e o Lula o nosso Abraham Lincoln. Tudo bem. A gente tem que viver a vida, e a vida continua. Vamos em frente. O que eu tava falando mesmo?

Ah, lembrei. Eu ia ajudar o Maneco a sacudir um pouco o marasmo da novela. Minha sugestão é a seguinte (não sei se vai dar tempo...). No réveillon, enquanto os demais personagens comemoram a passagem do ano numa linda festa à beira da piscina da mansão colonial, a linda garota tetraplégica chora muito e observa os fogos da janela de seu quarto. Nisso, o ex-namorado se atraca com a Liliam Cabral num caramanchão ao lado da churrasqueira, porque a coroa – como eu disse – dá uma meia-sola beleza. Em seguida, o caboclo, muito do sacana, lembra da linda garota tetraplégica abandonada em si mesma, presa no destino implacável armado pelo Manuel Carlos. Dá um carreirão e sobe a escala em caracol da mansão como se fosse um Stallone nas escadas da Filadélfia. Isso tudo com muita leveza e delicadeza, ao som de uma música triste (se não fosse novela do Maneco eu sugeriria um bolerão na voz de Altemar Dutra); enfim, ao som de qualquer coisa delicada e triste cantada pela Nara Leão, o galã entra no quarto e se aproxima da linda garota tetraplégica.

Antes de prosseguir, quero deixar muito claro que quem inventou essa personagem “a linda garota tetraplégica” foi o Manoel Carlos. Eu só estou aqui dando uma ajudazinha.

Pois bem. O galã se aproxima. Esqueci de dizer que ele está todo de branco. Ela chora, ele não fala nada. Nara Leão mia ao fundo (podia ser a Fernanda Takai imitando a Nara Leão...). A câmera faz um plano médio da cintura do galã para baixo. Vemos a calça branca dele cair lentamente. A bundinha do garotão se insinua, meio que embaçada porque a cena vai saindo de foco aos poucos. A mulherada enlouquece do lado de cá da telinha. Em momento algum o galã dobra o corpo, apenas leva “a câmera” em direção à boca da linda garota tetraplégica, que para de chorar imediatamente e começa a viver a vida na novela do Manoel Carlos ,nosso Balzac do Leblon. Corta!

Engula isso, digo, Praia de Copacabana. Fogos, luzes. Réveillon no Rio de Janeiro. Feliz 2010 politicamente correto para todos vocês. Beijos no coração.

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


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